Ultimamente, alguns amigos comentaram textos que escrevi, argumentando que tinham sido omitidos aspetos importantes ou que não esclarecera completamente certas ideias. Agradeço a sua intervenção crítica. Para mim, é sempre construtiva, independentemente do modo como possa ser expressa. Insisto, no entanto, neste ponto: Não sou proprietário de ideias. Se são verdadeiras, pertencem a todas as pessoas que as forem capazes de compreender; se não forem verdadeiras, então não tenho qualquer motivo para me sentir orgulhoso de as possuir. Devo, contudo, contrapor, em resposta a essas críticas que se não digo tudo aquilo que os Amigos propõem, deve-se a três razões fundamentais: A primeira (e talvez a principal, é porque sei muito pouco; a segunda, é porque mesmo que soubesse tudo, seria apenas capaz de comunicar uma pequena parte; a terceira, é porque reconheço que o mais que posso fazer, não é "expressar", mas "ir expressando" as ideias, na medida em que, provavelmente, me vou também autodescobrindo. Poderia ainda acrescentar uma quarta razão: A de que nunca me seduziu um processo "lógico" de pensar. De modo que é frequente contradizer-me. Assim, se hoje sou capaz de responsabilizar o avanço tecnológico pelos desastres ambientais e pela decadência moral da humanidade, amanhã, ou mesmo ainda hoje, posso dizer o contrário: Sou capaz de dizer, com fundamento na ciência esotérica, que sem o progresso científico e tecnológico não poderemos chegar àquela Idade abençoada (de que tanto falou o Abade Joaquim e Agostinho da Silva), em que a "Criança será o "imperador do mundo".
Afinal, parece que em tudo há um "sim" e um "não". Por isso, apesar da Verdade continuar distante de nós, é muito mais aliada do "paradoxo" do que do ortodoxo ou do heterodoxo. Há uma Fonte primordial e uma Ordem inteligente em todas as coisas. Por isso, há também uma reserva infinita dentro de nós, porque todos, sem exceção, estamos ligados à Fonte de energia do Universo, Devemos pedir por isso constante inspiração, porque precisamos de saber quem realmente somos e qual a nossa verdadeira função na vida. Aproveitemos então todas as condições, mesmo as mais adversas, para trabalharmos com o pensamento: Pensemos no bem e receberemos o bem; pensemos no mal e receberemos o mal. Mas, sendo a linguagem criadora, devemos ter cuidado com as palavras e, sobretudo com os sentimentos e pensamentos que elas veiculam. Tenhamos sempre a coragem de enfrentar os problemas de cada dia, sem pressa mas com diligência. Pois, como a maldição da vida consiste em adiar o que deve ser feito "já", aceitemos então as condições de que dispomos presentemente, sem nos deixarmos vencer nem perturbar, mesmo que essas condições nos pareçam impossíveis de ultrapassar. "No mundo só terás tribulações... mas alegra o teu coração", disse Jesus. O pensamento, associado à natureza das emoções, determina o rumo da nossa vida. Essa é a razão por que devemos "vigiar" permanentemente os sentimentos, os pensamentos e as ações. No princípio, será certamente difícil. Tem de haver um perseverante esforço consciente. Depois, tornar-se-á, a pouco e pouco, mais suave, à medida que conseguirmos encontrar em nós o equilíbrio. Mas, não nos deixemos iludir: Equilíbrio não é controlo. No controlo há tensão, insegurança, esforço. No equilíbrio há espontaneidade, segurança, paz. Disse Goethe: "De todas as cadeias que prendem o mundo, o homem libertar-se-á quando alcançar o domínio de si próprio". Notáveis pensadores, ao longo da história, reconheceram a importância do pensamento na organização da nossa vida e na construção do nosso destino. Deixamos aqui algumas dessas referências para a reflexão do leitor: "Porque, como imagina na sua alma, assim é" (Salomão - "Provérbios") "O que espera que aconteça, acontece" (Aristóteles) "Todas as coisas estão prontas quando a mente está" (Shakspeare) "Aquilo que temes, isso mesmo te acontecerá" (Job) "O pensamento humano cria aquilo em que pensa" (Eliphas Levi) "Se podes sonhar, podes realizar" (Walt Disney) "Só fazes o que pensas que podes fazer, e só consegues o que pensas que podes conseguir" (Walter Germain) É necessário não interpretarmos levianamente o que se diz a respeito de transformações imediatas que se operam na nossa vida, como pretendem certos autores de livros pseudo esotéricos, Na verdade essas transformações são realmente imediatas. Mas os resultados nem sempre são visíveis com o brevidade que desejamos. Para o Universo, o Tempo e a Vida são valores diferentes dos nossos.
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De acordo com a segunda Nobre Verdade do Budismo (o reconhecimento de que o sofrimento tem uma causa), somos, nós próprios, os verdadeiros responsáveis pelo nosso sofrimento. Contudo, é frequente atribuirmos aos outros essa responsabilidade. Ora, tanto o Budismo como o Sufismo acentuam a necessidade de nos mantermos atentos,"vigilantes", a fim de não procedermos desse modo. É talvez esta a mensagem que poderemos extrair desta engraçada história de Nasruddin:
"Quando Nasruddin e a mulher acabavam de regressar de uma festa, ficaram estupefactos ao verificarem que a sua casa tinha sido assaltada. Então, a mulher, muito aflita, começou a chorar e a gritar, atribuindo a culpa a Nasruddin: "Tu é que foste o culpado. Não verificaste a fechadura antes de sairmos de casa"... A vizinhança, ouvindo aqueles gritos, apareceu ali imediatamente, e um dos vizinhos comentou: "Eu já esperava que isto acontecesse mais dia menos dia... Vocês são muito distraídos..." E todos, por unanimidade, atrbuiram a culpa a Nasruddin, que tentava reagir àquele ataque: "Por favor... eu não tive culpa!" Mas a vizinhança em coro: "Então, quem é que teve a culpa?" E Nasruddin, respondeu timidamente: "A culpa não foi minha. A culpa foi do ladrão!" 8"o reconhecimento de que o sofrimento tem uma causa", Uma Parábola Budista:
"O monge Malunkia, preocupado pelo facto de Buda não abordar questões de índole metafísica, tais como a existência ou não existência de Deus, o caráter finito ou infinito do Universo, ou a continuidade da vida depois da morte, indagou ao Sábio o porquê desta falta. E Buda respondeu: - Escuta, Malunkia: Certa vez, um homem foi alvejado por uma seta venenosa; e os amigos, vendo-o à beira da morte, foram chamar urgentemente um médico. O ferido, porém, quando viu chegar o médico, disse que só tomaria o contraveneno e deixaria extrair a seta se, primeiramente, o informassem, em pormenor, do nome da pessoa que a lançara, da sua idade, da sua morada exata, do motivo por que assim procedera, e ainda das características do arco que utilizara. Que teria então acontecido a esse homem? - Provavelmente deve ter morrido, antes de ver esclarecidas as suas dúvidas - respondeu Malunkia. - Da mesma maneira - continuou Buda - as respostas a perguntas sobre o caráter .finito ou infinito do Universo, sobre a existência ou não existência de Deus, ou sobre a natureza da alma, não nos libertam do sofrimento. Ora, como precisamos de nos libertar do sofrimento nesta mesma vida, não te preocupes, pois, com as questões que eu não ensino, mas apenas com as que eu ensino, que são: a consciência do sofrimento; o reconhecimento da causa do sofrimento; a cessação do sofrimento; o caminho da cessação do sofrimento. " Primeira Nobre Verdade: A consciência do sofrimento Este é evidentemente o primeiro passo. Parece fácil. Mas, por muito que nos custe a admitir, muitos de nós não são capazes de dar este primeiro passo, porque não têm, não querem, ou não podem ter, verdadeira consciência do sofrimento. Projetados para a periferia do nosso ser, estamos cada vez mais distantes de nós próprios. Trabalhamos incansavelmente para melhorarmos as condições de vida, para termos mais conforto e comodidade, mas, por estranho que pareça, não nos preocupamos com a própria vida. Compreende-se assim por que razão este primeiro passo não seja tão fácil como parece à primeira vista. Segunda Nobre Verdade: Reconhecimento da causa do sofrimento: Este segundo passo é ainda mais difícil de dar. Atribuímos geralmente a origem do nosso mal a causas secundárias. Admitimos quase sempre aos outros a causa e a culpa de tudo que nos acontece; e, só excecionalmente reconhecemos em nós próprios a causa fundamental do nosso sofrimento. Contribui para isso a tendência frequente para "mentir a nós mesmos"; o que constitui um verdadeiro mecanismo auto-tranquilizador de anestesia mental que, por vezes, degenera num tipo extremamente grave de mentira que envenena todo o nosso ser - a hipocrisia. É no entanto oportuno salientar que o "Decálogo", que impõe ao homem a observância dos Mandamentos, não o proíbe de mentir senão num pequeno setor das relações humanas: o do falso testemunho; e ainda quando esse falso testemunho vai contra o próximo (Deuteronómio, V, 20). No fundo, há o reconhecimento de que a vida social não seria possível, nas condições atuais de progresso espiritual, sem a utilização da mentira, dentro daqueles quadros permitidos pela moral e pelo bom senso. Efetivamente, nem todas as mentiras são ameaças ao equilíbrio do mundo. Há não só as mentiras inofensivas, mas até aquelas que se aceitam do ponto de vista ético, como as que visam evitar um desgosto ou qualquer outro sofrimento psicológico, em casos, por exemplo, de doença ou de morte. Porém, quando "mentimos a nós próprios", com o propósito deliberado de ocultar aos nossos olhos as nossas intenções e os nossos defeitos, estamos a travar a marcha do nosso desenvolvimento interno, só possível numa relação contínua com a Verdade. Por mais que tentemos fugir à realidade, a origem do nosso mal encontra-se principalmente em nós próprios. Mas, este reconhecimento não exclui a responsabilidade dos governantes e da sociedade em geral pelos infortúnios que atingem a humanidade. Com efeito, seria insensatez, insensibilidade e hipocrisia dizer a todas as pesoas que se debatem com graves problemas: "Mude a sua maneira de pensar e tudo mudará na sua vida". Em situações de miséria, a sociedade - que somos todos nós - tem de intervir. Tem de intervir, não só pelas palavras e pela força do espírito, mas também pela ação e pelo apoio material. Como podemos esperar que alguém possa mudar para melhor, quando lhe faltam alimentos, roupas e habitação? Contudo, do ponto de vista do Budismo, é ao "eu" da Personalidade que se deve, sobretudo, pedir responsabilidade pela situação de sofrimento. É o "eu" da Personalidade que, sendo a causa principal das nossas limitações, tem de ser corrigido e aperfeiçoado, e assumir, por fim, a renúncia, para que seja possível a emergência de uma realidade mais ampla, mais profunda e mais elevada, o Nirvana, onde o ser se encontre livre de desejos, de obsessões e de tormentos. Terceira Nobre Verdade: A cessação do sofrimento Porque sofremos? O sofrimento tem alguma razão de ser? O sofrimento pode extinguir-se? O sofrimento é um sinal, uma advertência de que existe qualquer coisa errada na nossa vida. Sem o sofrimento não teríamos certamente a perceção de uma doença ou de uma infeção. Deixaríamos então que o mal avançasse e invadisse todo o organismo até nos causar provavelmente a morte. A dor é portanto um aviso, uma benção. Dá-nos a oportunidade de corrigir a tempo algo que precisa de ser corrigido. É por isso que o sofrimento e a sabedoria andam quase sempre associados. Não pelo sofrimento em si mesmo. Mas pelo trabalho que temos de realizar para o ultrapassar e pela resposta que temos de encontrar em nós próprios para contornar o obstáculo que nos prende à ilusão. Temos de admitir que o sofrimento seja um sinal de algum desequilíbrio. Mas, no cômputo geral de todas as coisas, esse Equilíbrio poderá ser restabelecido, mediante uma relação de sintonia com a Ordem universal. Por outras palavras - e de acordo com o Evangelho cristão - é preciso "cumprir a Vontade de Deus e não a nossa". Quarta Nobre Verdade: O caminho da cessação do sofrimento. Nisso consiste a Nobre Senda Óctupla: I- Reta compreensão; II - Reto propósito; III - Reta palavra; IV - Reta conduta; V - Retos meios de subsistência; VI - Reto esforço; VII - Reta atenção; VIII - Reta meditação. O cumprimento destas normas conduz ao Amor Objetivo (1), expressão suprema da realização humana, só possível, segundo o Budismo, com a extinção da Personalidade, destinada a perpetuar-se em sucessivis renascimentos (Sasmsara), causadores de dor, de angústia, de abatimento, de velhice e de morte.. Como não é difícil de compreender, tais normas - ainda que propostas de outro modo e com diferente terminologia - constituem o objetivo de todas vias de realização: Um profundo e vasto percurso de Beleza, de Amor e de Verdade. (1) Ao contrário do amor "subjetivo", o Amor Objetivo (expressão usada pala Tradição gnóstica ortodoxa) não admite interferência nem condições propostas pelo amante. Amar "objetivamente" é amar indistintamente o belo e o feio, o bom e o mau, o santo e o pecador, o amigo e o inimigo. É amar como a Luz, que permanece sempre "luz", sem se deixar vencer pelas trevas ou corromper pela matéria impura. Cada um de nós tem o seu "puzzle" para construir. Por isso, tem de procurar as peças que lhe são necessárias para as colocar no lugar certo, e no momento certo... Não é uma tarefa fácil evidentemente. Quantas peças necessárias nos passam despercebidas? Umas vezes, por ignorância; outras vezes, porque não estamos suficientemente atentos à sua presença; e outras vezes ainda, por não ser o momento adequado para as colocarmos no devido lugar, e termos, portanto, de aguardar que surjam primeiramente as outras peças que as devem anteceder na construção do "puzzle"... É por isso que, de acordo com o "Quarto Caminho", de que falámos na Reflexão anterior, todas as experiências da nossa vida são oportunidades para crescermos e expandirmos a consciência. É preciso, porém, que nos "recordemos já de nós próprios"... Não sei, porém, se esta expressão "recordação de nós próprios" é suficientemente esclarecedora. Se ainda o não for, espero que a continuação do que aqui se vai dizendo possa completar o seu verdadeiro sentido. Ora, o que se pretende propriamente dizer é que devemos mudar "já", imediatamente, neste preciso instante, a nossa atitude perante a vida.. Este "já" pode surpreender. Porque acompanha de certo modo a tendência da época em que vivemos, onde apenas o que é ""imediato" parece interessar. Pelo menos, é assim em relação a tudo o que está em conformidade com a sociedade de consumo: "Compre já o seu carro"; adquira já a sua casa..." Mas, como não queremos padecer deste mal do "imediatismo", quando dizemos "já", estamos a centrar-nos no reconhecimento da nossa natureza esencial. E esse reconhecimento implica que se não deve adiar, em circunstância alguma, o passo de libertação, que é necessário efetuar em cada momento... Insistimos, portanto, neste ponto: Se adiarmos o passo necessário, adiamos também a nossa própria libertação. E a peça do "puzzle", que devia ser colocada nesse determinado momento, ficou por colocar.
Recordarmo-nos de nós próprios é permanecermos no estado de Consciência. Mas, infelizmente, a maior parte nós evita o estado de Consciência, preferindo mergulhar no sono e no sonho, procurando muitas vezes refúgio no álcool, na droga, em todas as ilisões... Estar lúcido, estar consciente, nem sempre é fácil de suportar. Tornamo-nos demasiadamente sensíveis e vemos com mais clareza e profundidade as dificuldades da vida e as nossas próprias limitações. Contudo, não deve haver outra opção: Avançar resolutamente, no sentido de nos conhecermos melhor, a fim de alcançarmos o "estado de Consciência". Parafraseando Santo Inácio de Loyola, Jung disse que a consciência do homem foi criada para que possa: 1º - Reconhecer a sua descendência de uma unidade superior; 2º - Prestar a devida e cuidadosa atenção a essa fonte; 3º - Executar as suas ordens com inteligência e responsabilidade; 4º - Proporcionar, dessa forma, à psique. como um todo, o grande ideal de vida e desenvolvimento. Gurdjieff, a fim de que os seus discípulos se mantivessem sempre "vigilantes", dizia-lhes para não se identificarem com coisa alguma. Aconselhava-os então a serem espetadores dos seus próprios atos. Se chorassem ou rissem, deveriam ser somente "testemunhas" do seu choro ou do seu riso. Sem qualquer espécie de identificação. E costumava dizer: "Observe a ganância, observe o sexo, observe a cólera... mas não se identifique com esses sentimentos. Seja apenas uma testemunha. Isso foi o que ele designou por "Quarto Caminho". Mas, porquê "Quarto Caminho"? Porque, segundo Gurdjieff, há quatro caminhos que conduzem à realização humana, tendo, cada um, o sem método e objetivo específicos:
O primeiro Caminho é o do "faquir", cujo objetivo consiste em se alcançar o domínio do corpo físico; O segundo é o do "monge", que é trilhado mediante a prece e o culto, com longos períodos de meditação; O terceiro é o do "iogui", que visa o conhecimento e a compreensão, através dos níveis mais elevados do intelecto; O quarto não considera o progresso espiritual como fuga da vida. Vê em todos os acontecimentos oportunidades para elevar e expandir o nosso estado de consciência. Por isso, este "Quarto Caminho" exige o cultivo de um estado permanente de "vigilância" em relação a todas as oportunidades que nos são oferecidas. Nós devemos, portanto, estar atentos a todos os "sinais" e as todas as mensagens que nos chegam. Mas devemos também - e isso é particularmente importante - desenvolver o discernimento, no sentido de sermos capazes de interpretar corretamente esses sinais e essas mensagens. Com a finalidade de melhor comunicar as suas ideias, Gurdjieff fundou, perto de Fontainebleau, o Instituto de Desenvolvimento Harmonioso do Homem, cujo objetivo era a união do pensamento, do sentimento e da atividade física. Muitas vezes, usava processos pouco ortodoxos para despertar a consciência dos seus discípulos. Assim, durante as refeiçoes, fazia palestras e brindava alguns membros, atribuindo-lhes (com um ar muito sério), muitos tipos de "idiotias": A uns, chamava "idiotas redondos"; a outros, "idiotas quadrados"; a outros ainda, "idiotas compassivos". E por aí fóra... Havia, portanto, idiotas de todas as variedades. E, por muita estranheza que cause ao leitor, tudo isso era dito com o fim de desintoxicar padrões de comportamento, fixados pela moral convencional. Dizia habitualmente: "Vocês não percebem a vossa própria condição. Vocês estão numa prisão. Se forem realmente sensíveis à vossa situação, tudo o que mais desejarão, com certeza, é fugir! Mas, para fugir, é preciso cavar um túnel sob uma parede. Ora um homem sozinho não pode fazer nada... Mas, vamos supor que esse homem não está só... Vamos supor que estejam com ele dez ou vinte homens... Se eles trabalharem em grupo, e se cada um encobrir o outro, podem completar o túnel e fugir." Meditemos no sentido desta mensagem. Mas, o traballho em grupo só é realmente eficiente quando passa primeiramente pelo trabalho individual, isto é, pelo contributo que cada um de nós, individualmente, possa dar. Infelizmente, porém, nem sempre se verificam essas condições. Não raramente, o coletivo tende para a "homogeneidade", excluindo ou absorvendo a iniciativa individual, mesmo que essa iniciativa possa contribuir para um maior enriquecimento do grupo. Enquanto não aprendermos a "escutar", o verdadeiro trabalho em grupo não é possível. Estamos somente atentos aos nossos pensamentos e às nossas palavras... Ouvimo-nos apenas a nós próprios. E, ainda que se reconheça a necessidade de uma "abertura" ao diálogo, constatamos facilmente que o diálogo não passa geralmente de uma esgrima de argumentos onde os falantes se escondem por detrás de cortinas ideológicas. Se, por um lado se exige cada vez mais a"pluralidade",por outro lado, também se tem de exigir uma "Unidade" cada vez mais profunda. A mais elevada sabedoria do Budismo mostra-nos a necessidade de permanecermos atentos, sempre muito atentos, em relação a todos os nossos atos, por mais insignificantes que nos possam parecer. Aliás, a ideia de significância ou de insignificância é puramente subjetiva. Porque tudo é significativo. Mas, para que tudo seja para nós significativo é necessário que lhe prestemos a melhor atenção:
"O Mestre Zen, Tan-In, tinha um discípulo, Tenno, que, depois de estagiar consigo durante dez anos, o fora visitar. Era um dia chuvoso. E Tenno, deixou à entrada os tamancos e o guarda-chuva. Quando entrou, Tan-In perguntou-lhe: De que lado deixaste os tamancos? À esquerda ou à direita do guarda-chuva?" O discípulo hesitou, confuso. E como não fosse capaz de responder imediatamente, o Mestre exigiu que ele ficasse mais dez anos a estagiar consigo." Nós, porém, estamos quase sempre desatentos em relação aos nossos atos. E até atribuímos, às vezes, uma certa importância a essa distração, como sendo um privilégio dos sábios e dos génios. Diz-se que Einstein era tão distraído que um dia, quando esteve nos E.U.A., se esqueceu da sua própria morada. Então, dirigiu-se a uma estação dos Correios e perguntou à funcionária onde residia Albert Einstein. E a empregada, por sua vez, perguntou: "Mas o senhor conhece Albert Einstein?" E ele respondeu de imediato: "Sou eu mesmo". Diz-se também que Edison, no próprio dia do seu casamento, se refugiou na oficina, a fim de prosseguir as experiências que estava a realizar sobre a lâmpada elétrica. E por ali ficou durante muito tempo, inteiramente concentrado na sua investigação, até que, surpreendidos pela demora, os amigos foram procurá-lo: "Então, não compareces na igreja? Está toda a gente à tua espera..." Dando conta da situação, Edison desceu subitamente à realidade e exclamou: "É verdade, eu hoje casei-me!". Custa a crer. Mas, sobre este género de distrações há muito que dizer... Talvez não se possa falar propriamente em desatenção. Antes, pelo contrário. Talvez se trate de uma forma suprior de atenção. Pois, quando se está profundamente atento em relação a um determinado assunto, exclui-se do campo da consciência todos os outros assuntos. Mas isso é considerado geralmente como distração, e os Mestres do Zen não aceitam essa atitude. Para concluir, e para ilustrar melhor esta ideia, deixo esta história engraçada: "Num avião, seguiam três passageiros: um génio, um escuteiro e um bispo. A certa altura, o avião teve uma avaria; e o piloto anunciou que deviam abandonar o aparelho. Mas, como só havia três paraquedas (e o piloto ia usar um deles), restavam somente dois. Ora, os passageiros eram três. Tinham portanto de decidir quem se salvaria... O génio disse: "Como faço falta à humanidade, acho que me devo salvar!" Pegou imediatamente num dos paraquedas e saltou. Restava portanto apenas um paraquedas. O bispo olhou para o escuteiro e disse: "Meu filho, eu já vivi o suficiente. Por isso, acho que deves ser tu a usar o paraquedas. Estou pronto a morrer..." Mas o escuteiro observou: "Mas, isso não é necessário, sr. Bispo. Temos ainda dois paraquedas!" "Dois paraquedas? Como é isso possível, se o génio já saltou?" - disse o bispo surpreendido. "Sim... Mas o génio saltou com a minha mochila!" - comcluiu o escuteiro." Temos estado ainda a falar sobre o Sufismo, evidenciando as "graças" de Nasruddin como forma de comunicar e de ilustrar, de um modo não filosófico, determinados conceitos de vida. Referimo-nos assim ao "sono"e ao "sonho" - estado que acompanha, infelizmente, a existência da maior parte de nós. Mas, os Sufis usam também o termo "embriaguez" para expressar esse estado em que vivemos, sendo por isso que algumas engraçadas histórias de Nasruddin apresentam o protagonista embriagado e cometendo, em consequência, os maiores disparates:
"Um dia, Mullah Nasruddin foi ao bar da cidade. Como já estava muito embriagado, o dono do bar não o deixou entrar. Mas, Nasruddin insistiu; e o dono do bar teve de o expulsar. Foi então à procura de outro bar. Mas, depois de andar muito, acabou, sem dar por isso, por regressar ao mesmo estabelecimento onde estivera inicialmente, entrando porém por outra porta. Olhou suspeitosamente para o dono do bar, porque o seu rosto já lhe era familiar, e pediu uma bebida. O dono do bar, reconhecendo-o imediatamente, zangou-se: "Eu já lhe disse que esta noite não lhe vou vender mais nenhuma bebida. Vá-se embora daqui porque você está a cair de bêbado!" Nasruddin saiu. Voltou a caminhar, cambaleando, à procura de outro bar. Andou, andou uma longa distância...Mas, como só havia aquele bar, acabou por regressar novamente a ele, sem dar por isso. Quando entrou, olhou para o dono do bar, cujo rosto já conhecia, e disse com um ar muito apalermado: "O quê? Mas então tu é que és o dono de todos os bares desta cidade?" De facto, enquanto não "despertarmos", ou enquanto permanecermos "embriagados", como a personagem desta história, voltamos sempre a fazer os mesmos disparates. Prometemos até a nós próprios emendar-nos. Mas, em vão. Não há emenda possível. Ao mínimo contratempo ou em qualquer situação imprevisível, "adormecemos" imediatamente e cometemos os mesmos erros. Mais uma engraçada história de Nasruddin, alusiva ao mesmo assunto: Conta-se que ele entrou num ascensor, cheio de gente, completamente bêbado. Todas as pessoas se aperceberam disso e, ainda que Nasruddin tentasse disfarçar, não o conseguiu. Virou-se, fez o possível para não ser observado, até que, não sabendo já o que fazer, disse de repente: "Vocês devem estar todos a pensar por que é que eu convoquei esta reunião..." Moral destas histórias: Se não estamos "embriagados" pelo vinho, estamos "embriagados" pela força diluviana da informação, pelas novelas que nos impingem na televisão ou pelas mentiras que nos chegam através dos livros e dos jornais.... Temos de estar cada vez mais "vigilantes". Temos feito, durante estas Reflexões, diversas referências ao Zen, pelo que alguns Amigos revelaram interesse em conhecer melhor os seus ensinamentos. Não temos, contudo, a pretensão de os esclarecer completamente. Mas, como também não queremos recusar o seu pedido, apresentamos uma pequenina nota histórica: O Zen teve origem na China, no século VI, como um encontro entre o Budismo indiano e o Taoismo, realçando a importância da meditação em detrimento do ensino, como sendo o caminho mais curto e mais rápido para se alcançar a Iluminação. Diz-se que o Zen constitui, na sua essência, o Alfa e Ômega do Budismo. E, neste aspeto não é uma escola budista. É o próprio Budismo.
O Dr. Suzuki, considerado a maior autoridade neste assunto, afirma que "nós não vivemos através do Zen", "vivemos o Zen". Que pretende ele dizer com isso? Ele pretende dizer que o Zen permeia toda a nossa vida, mas nós não estamos conscientes desse facto. Todas as nossas experiências diárias são, efetivamente, experiências do Zen, mas nós não reconhecemos isso. Que devemos então fazer para "vivermos através do Zen"em lugar de "vivermos o Zen"? Devemos tomar consciência do Zen na nossa vida. E isso transformar-nos-á imediatamente, porque reconheceremos que os factos mais simples têm todos uma profunda significação espiritual. Eis um exemplo: "Ryutan Shin permaneceu com Tenno durante três anos, sem que tivesse recebido, aparentemente, qualquer instrução relativa ao Zen. Surpreendido, interrogou Tenno sobre o motivo por que não tinha recebido instrução. E Tenno, então, respondeu do seguinte modo: "Quando me trazes chá, eu não bebo? E quando me trazes comida, eu não a aceito?" O Zen resume-se, de certo modo, a isto: "Tomar consciência dos atos mais simples da nossa vida, atribuindo-lhes uma profunda significação espiritual. É isso que significa "viver através do Zen". Os animais "vivem o Zen", mas nunca podem viver "através do Zen". Só o homem tem essa possibilidade. Portanto, dizer que o Zen é irracional é uma afirmação que se ajusta ao cão, mas não se ajusta ao homem. Porque, relativamente ao homem, o Zen é "supra racional", transcendendo a sua habitual "lógica" de pensar, e situando-se no nível em que "a vida deixa de ser um mistério para ser compreendido para ser um mistério para ser vivido". Devo no entanto sublinhar que não é minha intenção priveligiar o Zen em relação a qualquer outra expressão de espiritualidade. Acima de tudo está a Verdade; e sei bem que a Verdade não está contida exclusivamente numa determinada escola, via ou em certa "linha" de pensamento, como às vezes se diz. A Verdade tem de ser universal, mas cada um de nós deve escolher a via de acesso que mais lhe convém. Para terminar, não deixo de referir o que pensava o Mestre Agostinho da Silva a respeito do Zen. Numa conversa com ele, disse-me a determinada altura que tinha realmente muita simpatia pelo Zen. E esclareceu a razão: "O Zen aproxima-se muito daquilo que eu considero ser a mística do Espírito Santo. É talvez o seu equivalente oriental..." Oportunamente, terei de falar sobre este assunto, especialmente para os admiradores de Agostinho da Silva que não tenham ainda compreendido muito bem a importância que ele atribuia a essa forma de espiritualidade, Temos estado a falar sobre o "sono e o "sonho", como um tema comum às diversas tradições. Contudo, ainda que se trate de um assunto da maior importância, o seu sentido mais profundo passa geralmente despercebido a grande parte das pessoas que, continuando a "dormir", imaginam no entanto que se encontram completamente "despertas". Claro que, em relação a isso, poder-se-á argumentar ser precisamente por esse facto que se não tem a clara consciência de se estar "adormecido". Mas nós não desistimos. Apesar de também não sermos imunes à influência deste "sono" coletivo, não desistimos de o combater.
O grande Iogui do século XIX, Ramakrishna, para mostrar que a vida, tal como é vivida pela maior parte de nós, não passa afinal de um sonho, costumava contar esta parábola: "Um pobre pescador perdeu o seu único filho, depois de gastar tudo quanto tinha para o salvar. Porém, enquanto a mãe estava inconsolável, ele parecia insensível. Por isso, a mulher, surpreendida e ao mesmo tempo chocada com a atitude do marido que não vertia uma só lágrima, observou-lhe: "O nosso filho morreu. E tu pareces indiferente. Como podes ser assim tão insensível?" Então, o pescador respondeu: "Sabes porque não choro? Porque esta noite sonhei que era rei e que tinha sete filhos. Quando acordei, vi que se tratava de um sonho e que não tinha nenhum filho. Afinal, foi como se tivesse perdido, ou tivessem morrido, os sete filhos do meu sonho! Agora estou acordado, mas continuo a sonhar... Então, se estou a sonhar, por que devo chorar pelo único filho que perdemos e não pelos outros sete que perdi quando despertei?" A mensagem desta parábola poderá parecer exagerada ao leitor. Mas, à luz dos ensinamemtos védicos, expressa uma profunda sabedoria. Diz o Bhagavad Gîta que "o verdadeiro Sábio não deve chorar nem pelos vivos nem pelos mortos". Porqque a morte e a vida fazem parte do mesmo jogo! Reconhecemos, no entanto, que tal atitude não pode ser exigida ao ser humano no seu estado atual de evolução. Por isso, é mil vezes preferível sermos autênticos, deixando exteriorizar o impulso, por vezes imprevisível e incontrolável das nossas emoções, do que que expressar o fingimento de comportamentos artificiais ou fictícios. a "Orar e vigiar" é uma das mais importantes mensagens do Evangelho cristão. Mas, esta mensagem esteve também sempre presente no pensamento e na doutrina de todos os verdadeiros Mestres. Disse Heraclito de Efeso (540 ou 480 a. C.):
"Os homens são tão esquecidos e desatentos, nos seus momentos de vigilância sobre o que se passa à sua volta, como o são durante o sono. Os tolos, embora oiçam, são como surdos. A eles é aplicado o provérbio de "sempre presentes mas sempre ausentes". (...) Os vigilantes possuem um mundo em comum, mas os que dormem têm, cada um, um mundo privado. Aquilo que vemos, quando despertos, é a morte. Quando adormecidos, vemos os sonhos." "Os vigilantes possuem um mundo em comum. Mas os que dormem têm, cada um, um mundo privado". Meditemos nestas sábias palavras. E, a pouco e pouco, níveis mais elevados de consciência se vão desvelando... Porque estamos perante uma questão de fundo: "A verdade é só uma para os que estão "despertos"; porém, há muitas "verdades" para os que "dormem". Mas, que pretende dizer Heraclito com o facto dos "despertos "terem a visão da "morte", enquanto os outros vêem somente os sonhos? É que quem está "desperto", (no sentido que está a ser atribuído a esta palavra), não vive num mundo de ilusões. Sabe que a vida física é limitada e, só por ignorância ou estultícia, fazemos dela o nosso único objetivo. Receamos olhar frontalmente para a morte, porque ainda não adquirimos a perspetiva mais elevada da vida, que consiste em compreender que a morte e a vida fazem parte do mesmo jogo. São irmãs inseparáveis. São interdependentes. Por isso, ver a morte não é, como se possa pensar, à primeira impressão, cair num estado mórbido de angústia e de tristeza. Ver a morte é vencer o medo de enfrentar o desconhecido e o mistério da própria Vida, a fim de se alcançar a libertação e a Consciência Também os ensinamentos de Buda insistem na necessidade de "Vigilância". E, em termos semelhantes aos de Heraclito, se diz no "Dhammapada": "A vigilância é a direção para a Vida. O tolo dorme como se já estivesse morto. Mas o Mestre está desperto e vive para sempre. Ele observa; Ele é puro. Como Ele é feliz! Pois, Ele vê que vigilância é vida. Como Ele é feliz, seguindo o caminho dos despertos. Com grande perseverança, Ele medita em busca da liberdade E felicidade." Perante a convergência destes dois textos (o de Heraclito e o de Buda) é ou não verdade que os "despertos" têm um mundo em comum? O tema do sono e do sonho é no entanto comum a todas as tradições. Jesus advertia frequentemente os seus discípulos da necessidade de "orar e vigiar" e, por diversas vezes, disse que os encontrara "dormindo". E nesta mesma ordem de ideias, também o Mestre Chuang Tzu costumava dizer que certa noite sonhara que era uma borboleta. E, de manhã, ao acordar, tomou consciência de que não era nenhuma borboleta, mas, sim, Chuang Tzu. Contudo, como sabia que a vida não passa de um sonho e que, pelo facto de acordarmos de manhã, não deixamos de continuar a dormir e a sonhar, limitou-se a dizer: "Afinal, não sei se foi Chuang Tzu que sonhou que era uma borboleta ou se é, agora, a borboleta que está a sonhar que é Chuang Tzu..." |
JOSÉ FLÓRIDOREFLEXÕES Histórico
Março 2017
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