A Universidade moderna tem sido (como já tenho dito diversas vezes) uma conspiração permanente contra o universal. É preciso que os principais responsáveis pelo sistema de ensino não estejam somente interessados na especialização e na multiplicação das licenciaturas. A fragmentação do saber, se bem que tivesse sido, e ainda seja, uma consequência inevitável da marcha da história, conduz também à fragmentação individual e social. Basta observar, por exemplo, as dificuldades de algumas pessoas quando, desconhecendo o pensamento e a linguagem de outras que conheceram recentemente, não sabem como dirigir a conversação.
Esta fragmentação limita a dinâmica e a amplitude do convívio humano. E, às vezes, tem de haver até secções diferentes para os que falam de política, de economia, de medicina, de educação, de criminalidade... e até mesmo das frivolidades do mundo da moda. Por isso, esta limitação terá agora de ser contrariada por um sentido mais profundo de unidade e por uma maior abertura à "vida conversável". São necessárias "referências comuns" mais abrangentes. E ainda que se possa dizer que a Política seja (ou deva ser) uma das principais referências comuns, à volta da qual gravitem os nossos interesse e, consequentemente, devam gravitar também as nossas conversas, o facto é que não é isso que se verifica. Contudo, há uma referência comum que lidera, de longe, todas as outras: O Futebol. O Futebol deve a sua promazia a esse facto . Vemos como pessoas dos mais diferentes estatutos sociais são capazes de convergir nesse fenómeno mágico do futebol. E todos, ou quase todos, quando se encontram ou reunem, começam logo a beber a água da mesma fonte, esquecendo ou ignorando as diferenças de cultura ou de inteligência que os separam. Porque todos - mesmo os mais ignorantes em matéria de "futebolês" - se mostram capazes de discutir com os mais "sábios" a importância daquele golo "marcado de cabeça" ou de criticar a atuação do arbitro que, em determinada situação do jogo, deveria ter assinalado uma "grande penalidade"... Mas, há ainda outras referências comuns, de menor relevância, como, por exemplo, o estado do tempo: "Hoje, parece que vai chover.... Mas para a semana, vai estar bom tempo... Podemos ir para a praia..." E também há aquelas "conversas para boi dormir", como dizem os Amigos do Brasil, que, não levando a parte alguma, servem no entanto para encobrir a nossa incapacidade, ou a nossa impossibilidade, de dizer coisas mais sérias e valiosas. Mas, afinal, tudo, tanto no Universo como na vida humana, se encontra numa relação de interdependência. Disse um grande Poeta: "Quando se colhe uma flor há uma estrela que sente". Não faz, por isso, sentido, que façamos das nossas relações sociais compartimentos separados. Agostinho da Silva, em "Educação de Portugal, foi esclarecedor: "Reservemos para nós a tarefa de compreender e de unir; busquemos em cada homem e em cada povo e em cada crença não o que nele exista de adverso, para que se levantem as barreiras, mas o que exista de comum e de abordável, para que lancem as estradas de paz; empreguemos todas as nossas energias em estabelecer mútuo entendimento; ponhamos de lado o instinto de particularismo e de luta; alarguemos a todos a nossa simpatia."
0 Comentários
Provavelmente, houve muitos santos que não foram canonizados, nem nunca o serão certamente, porque, na realidade, não chegaram a fazer "milagres" ou, porque se os fizeram, passaram completamente despercebidos, embora pudessem revelar a santidade do Amor e do espírito de serviço até ao limite das suas forças para com aqueles que necessitavam do seu auxílio. Mas, o oposto também tem acontecido: Houve, com certeza, outros que foram canonizados apenas por supostos "milagres" que, afinal, nunca aconteceram, porque a ciência, mais tarde, provou que se deviam a causas absolutamente naturais.
A palavra "milagre", como já tive oportunidade de dizer, deriva do termo latino "mirabilia", que significa propriamente "aquilo que é digno de ser visto". Neste sentido, há muitas coisas que são dignas de serem vistas, podendo, por isso, serem considerados "milagres", como, por exemplo, o nascimento de uma criança ou o segredo de uma pequenina semente, potencialmente capaz de se transformar numa árvore gigante. Só não são considerados "milagres", porque o milagre, para nós, é sempre algo que está relacionado com factos sobrenaturais, ainda que não me pareça sempre fácil distinguir o natural do sobrenatural. Mas, vamos ver como é que a Tradição gnóstica ortodoxa analisa este assunto: Do seu ponto de vista, o milagre consiste na interferência de leis de um Cosmos superior no nosso Cosmos. E essa interferência deve-se muitas vezes, por razões difíceis de explicar, à presença de um agente catalisador. Neste caso, Alguém, em que o elevado nível de realização espiritual possibilite essa interferência e, consequentemente, a efetivação de um facto extraordinário. Isso significa que, no fundo, as leis subjacentes ao milagre são leis do Universo, do mesmo modo que as leis da natureza terrestre também o são. Mas, porque as desconhecemos, não as sabemos explicar nem interpretar. Impõe-se, no entanto, um melhor esclarecimento. E, por isso, retomamos uma questão que já foi por nós abordada. Segundo a Tradição gnóstica, o Macrocosmos é composto por sete Cosmos, correspondendo às sete notas musicais, e constituindo aquilo que se designa pela Grande Oitava cósmica do nosso Raio de Criação: - Protocosmos - correspondente ao DO ("DOminus" - Deus. Criador do Universo); - Aghiocosmos - correspondente ao SI ("SIdereus orbis" - O mundo sideral. Conjunto de todos os mundos); - Megalocosmos - correspondente ao LA ("LActeus orbis" - Via Láctea); - Deuterocosmos - correspondente ao SOL ("SOl" - A nossa estrela); - Mesocosmos - correspondente ao FA ("FAtum" - O mundo planetário, em relação ao qual a Astrologia tem atribuído o Fado ou destino da humanidade); - Tritocosmos - correspondente ao MI ("MIxtus orbis" - A Terra, onde se verifica a "mistura" do Bem e do Mal); - Tessarocosmos - correspondente ao RE ("REgina astris" - A Lua. Regente do destino, segundo os antigos). Esta é a Oitava descendente ( do Absoluto para o homem). Mas há também a Oitava ascendente (do homem para Deus). E neste caso, o DO inicial é substituído pelo UT (antiga nota musical DO). UT vem de "Uterus", porque o "útero" representa a porta do nascimento segundo a carne. Partindo do DO inicial, o divino poder criador manifesta-se através dos sete escalões referidos, e a Lei universal, que se expressa univocamente no primeiro escalão (Protocosmos), ramifica-se progressivamente, à medida que vai decorrendo o processo descendente através dos outros escalões do nosso Raio de criação. Cada Cosmos tem, porém, as suas próprias leis. Mas, não deixa de exercer, numa relação de contiguidade, a sua influência sobre os outros. E, por vezes, como já assinalámos, há uma interferência das suas leis. No nosso Cosmos, essa interferência pode ser causada pela presença de uma consciência mais elevada, como a de Cristo ou de Buda, verificando-se então fenómenos que a ciência, por enquanto relacionada somente com as leis do Cosmos terrestre (o Tritocosmos), não consegue explicar. Não estamos, evidentemente, perante um assunto de fácil entendimento. Mas, não creio que se deva maximizar o "milagre". E atribuir aos grandes Mestres da humanidade o conceito de "milagreiros" é, a meu ver, minimizá-los. Por certo, há ainda muito mais a dizer. E todos temos o direito e o dever de nos questionarmos sobre este assunto. Será portanto aceitável a explicação apresentada pala Tradição gnóstica ortodoxa? Será mesmo essa a génese do milagre? Antigamente, havia Cafés que eram verdadeiros centros de convívio. Alguns eram mesmo autênticas Universidades livres, como o Café Colonial, nos Anjos, que eu considerava uma espécie de dependência da minha casa. Quando saía, muitas vezes cansado e pesaroso do meu emprego, ou mesmo depois de já ter jantado, encontrava sempre ali um refúgio mágico, uma convivência cordial de estudantes, de professores, de escritores e de jornalistas. E, dentre os mais assíduos, saliento as figuras que pontificavam pelo saber e pela experiência: O José Marinho, pensador platónico, saudosista e metafísico, e o Álvaro Ribeiro, filósofo de fundo aristotélico. Mas havia mais: o António Quadros, o Orlando Vitorino, o Jorge Preto, o António Telmo, o Luís Espírito Santo, o Fernando Sylvan, o António Braz Teixeira, a Ana Hatherly, a Natália Correia, o Luís Furtado, o Fernando Vasconcelos, o Luís Zuzarte, o Alberto Gonçalves... E apareciam também, de vez em quando, o Delfim Santos e o Sant' Anna Dionísio... E, foi a partir de quase todos estes pensadores que se criaram dois órgãos de divulgação literária: O "57" e, mais tarde, a revista "Espiral".
Quando nesses convívios o diálogo não atingia sempre o mesmo nível e parecia declinar, aproximando-se da superficialidade ou mesmo da mediocridade, o José Marinho dizia, com um sorriso irónico: "Isto, nem sempre pescada, nem sempre sardinha..." . Dele, recordo a sua presença de Mestre e reavivo a gratidão de ter sido por seu intermédio que tive o privilégio de conhecer Agostinho da Silva. Dele, recordo também a sua "Teoria do Ser e da Verdade", livro tão laboriosamente e demoradamente escrito, sobre o qual quis também apresentar uma leitura. E memorizei mesmo, até ao dia de hoje, o parágrafo inicial, não porque disponha de uma memória acima do normal, mas porque aquelas palavras, genialmente alinhadas, que o compunham eram, por todos nós, repassadas inúmeras vezes: "Aquele a quem foi dado ser plenamente como a quem e negado todo o parcial ser e, no ver do que é, infinitamente ultrapassa todo o ver e saber finito, esse, no mesmo instante em que frui a mais pura alegria, sabe para sempre toda a verdade." O Marinho, como quase toda aquela gente que o acompanhava, amava muito (ou mesmo em demasia) as palavras e, por isso, tentava "dizer o indizível". Considerava esse primeiro parágrafo a sua "coroa de glória", que era talvez a síntese e a perceção de tudo o que seria desenvolvido posteriormente. E quando, certo dia, lhe telefonei a dizer que o interpretara como expressão da "Parábola do Filho pródigo", ficou muito interessado e quis imediatamente falar sobre esse assunto. Encontrámo-nos então num Café próximo do local onde residia e, algum tempo depois de iniciada a conversa, declarou: "Quando você me apresentou o sua interpretação pelo telefone, pensei para comigo mesmo: "Estás completamente a leste... Mas, agora vejo que foi mais longe do que eu pensava... e acho até que a sua leitura é muito interessante. Veja lá se me ajuda a perceber este livro!" Ora, este pedido de auxílio do autor para a compreensão de um livro, por ele próprio escrito, é quase um fenómeno hilariante. Contudo, justifica-se, se conhecermos a natureza e a dimensão do seu pensamento: José Marinho sempre me pareceu acreditar que aquilo que escrevia estava acima da sua condição humana. Tudo lhe era, de certo modo, revelado, sendo ele apenas um intermediário consciente dessa revelação. Mas, a conversa não se fixou demoradamente nesse assunto. Derivámos para o Fernando Pessoa e para o Teixeira de Pascoais, que eram os Poetas relevantes da "Filosofia Portuguesa". O Marinho era "Pascoalino". Tinha sido amigo de Pascoais e nutria por ele uma admiração quase sobrenatural. E sempre que confrontava Pessoa com Pascoais, ponderava: "Pessoa "pessoliza" a Poesia; Pascoais deixa-se atravessar por ela..." E já no fim do nosso encontro,declarou: "Você soube demasiadamente cedo certas coisas... E agora tem de sofrer as consequências...". Mas, só muitos anos depois, consegui compreender as "consequências" a que o Marinho se estava a referir. É que tem de haver um tempo para tudo... e se nos antecipamos, quase sempre temos de pagar, mais tarde, a fatura da nossa antecipação. Do Álvaro Ribeiro não tenho uma recordação tão precisa. Mas nunca esqueci o facto de, certo dia, me ter advertido pela irreverência da minha juventude. Imaturamente, queria emitir opiniões sobre todos os assuntos, antes de, primeiramente, aprender a pensar e a escutar os mais sábios e os mais experientes. Hoje, dou-lhe razão. E, por isso, sempre tentei fazer ver aos meus alunos o quanto é precioso ser recetivo, antes de se ser prematuramente, e precipitadamente, emissivo, embora reconheça que a mais importante aprendizagem é, não a de escutarmos os outros, mas a de nos "escutarmos a nós próprios", ouvindo a voz do nosso Mestre interior. É nisso que consiste realmente o despertar da "Intuição", palavra que significa propriamente, e de acordo com o seu étimo, "ouvir de dentro". Mas foi, como já referi, o José Marinho que me apresentou o Agostinho da Silva. Para isso, convidou-me para assistir e tomar parte numas conferências que se realizavam no IADE, cujo diretor, segundo creio, era o Lima de Freitas. No dia aprazado, vi entrar na sala um homem modestíssimo, quase um campónio, mas irradiando uma fascinante serenidade. Era o Agostinho. Cumprimentou as pessoas presentes e, depois, dirigindo-se a mim, perguntou: "E este senhor, quem é?" O Marinho fez a apresentação. E o Agostinho da Silva, que não me conhecia de lado algum (nem eu a ele), declarou com um sorriso imensamente franco: Tem graça... era mesmo consigo que eu queria falar..." Como pretexto para uma breve reflexão sobre Krishnamurti, vou começar por me referir à controvérsia entre Salih e Rabiya, dois iluminados mestres sufis:
Salih dizia aos seus discípulos (tal como Jesus também o disse) para não cessarem de "bater à porta que alguém a viria abrir". Que significado tem "bater à porta"? Na linguagem dos místicos "bater à porta" significa o trabalho persistente sobre nós próprios, no sentido de procurar a verdade. Trabalho que inclui, para além da oração e da meditação, muitas outras atividades, como o estudo de obras filosóficas e religiosas, as palestras, as conferências e até mesmo aquilo que costumamos designar por "serviço". Ora, enquanto para Salih era indispensável "bater incessantemente à porta" a fim de se alcançar a autorrealização, para outro grande mestre, Rabiya, tratava-se de um procedimento completamente inútil e absurdo. "Quantas vezes precisas tu de dizer a mesma coisa? - perguntava Rabiya. Porque estás sempre a insistir na necessidade de "bater à porta"? Ora, a porta já está aberta. A porta sempre esteve aberta. É portanto tolice bater a uma porta que já está aberta." Dois mestres iluminados. Duas opiniões contrárias. Qual deles tinha razão? À primeira vista, não parece plausível que dois mestres da dimensão de Salih e de Rabiya estivessemm em total contradição. Quem estaria certo? De acordo com a nossa lógica, um deles, deveria estar errado. Se Salih considerava que era necessário "bater incessantemente à porta" e Rabiya dizia o contrário, afirmando que a porta sempre estivera aberta, não podiam estar, ambos, certos. Um deles estava, com certeza, errado. Mas, não será possível um outro ponto de vista? Não será possível estar para além do "certo" e do "errado" e admitir que os dois pudessem ter razão? Rabiya tinha razão porque, de facto, a porta está e esteve sempre aberta. Mas Salih também tinha razão em querer que os seus discípulos não cessassem de bater à porta: É que o comum das pessoas não percebe que a "porta está e esteve sempre aberta". Por isso, precisam de bater muitas vezes à porta. Não para que a venham abrir, mas, para que, um dia, se possam aperceber de que a porta esteve sempre aberta. Então, talvez exclamem, surpreendidos: "Olha...afinal, a porta estava aberta! Porque estive eu, então, a bater, durante tantos anos, à porta? Bastava um simples empurrão... Cheguei agora ao ponto que pretendia: Haverá alguma relação entre Krishnamurti e aquilo que se acabou de dizer? Penso que sim. Por isso, cito uma afirmação por ele feita, numa das suas conferências, relativamente ao processo de busca da verdade: "Em geral, "buscamos", porque nos sentimos muito confusos. Mas com a mente nova, em cada instante, nunca estamos a buscar. A ideia de "buscar e achareis" é, para mim, totalmente absurda". E, mais adiante, numa referência à meditação, declara: "A meditação é importante, mas não o "como" meditar, não a prática da meditação, não a maneira de manter certas visões que são infantilidades que, infelizmente, foram exportadas do Oriente para o Ocidente." Pelo exposto, se vê que, tanto para Krishnamurti como para o mestre sufi Rabiya, é absurdo o processo de busca, que consiste em "bater a uma porta que está sempre aberta". Todas as técnicas, assim como a relação mestre-discípulo são inúteis para Krishnamurti. Mas, será mesmo assim em todas as circunstâncias? Porque razão Krishnamurti é hostil em relação às técnicas? É que condenar as técnicas também é uma técnica. Podemos chamar-lhe a "técnica da não-técnica". E Krishnamurti não foi o primeiro a usar esta técnica da "não-técnica". Bodhidharma, que introduziu o budismo Chan (ouZen) na China também a aplicou. Aliás, esta ausência de técnicas é uma característica do Zen. E Krishnamurti está muito próximo do Zen. Tudo o que Krishnamurti diz é estritamente verdade. Contudo, o que ele revela não é compreendido pela generalidade das pessoas que têm assistido às suas conferências, porque quem o quer ouvir vai à procura de uma resposta para as suas inquietações. Vai à procura de um "como". E essa resposta nunca é dada por Krishnamurti. Esse "como" é sempre recusado. Neste aspeto, Buda foi explícito: "Quando alguém quer atravessar um rio, serve-se de um barco. Mas, depois de chegar à outra margem, não vai andar com o barco às costas". Trata-se, evidentemente, de uma alegoria: O barco representa os meios, ou técnicas, de que nos servimos para alcançar a autorrealização. Mas, logo que esse objetivo é alcançado (a outra margem do rio), o barco (as técnicas) deixa de ser necessário. A diferença entre o ponto de vista de Buda e o de Krishnamurti consiste no facto do primeiro reconhecer a necessidade do "barco" antes de se alcançar a outra margem, enquanto Krishnamurti recusa, pura e simplesmente, a necessidade do "barco", em qualquer circunstância. Todos devem atravessar o rio a nado. Krishnamurti é, provavelmente, alguém que já está na outra margem. Alguém que fala a linguagem dos "despertos", mas que, talvez, não disponha, ou não queira dispor, de uma corda para puxar os outros. Ora, no estado em que se encontra a quase totalidade das pessoas, a "corda" é necessária, o "barco" é necessário, as técnicas são necessárias. É preciso portanto não cessar de "bater à porta", como disseram Salih e Jesus, para que, um dia, se possa perceber aquilo que Rabiya e Krishnamurti afirmaram, ainda que de modo diferente: A porta está e esteve sempre aberta. Agostinho da Silva costumava dizer que o pecado contra o Espírito Santo - o único que Jesus considerava imperdoável - consistia em se perder o "dom da imprevisibilidade". Estamos, evidentemente, perante uma questão imensa, em relação à qual, qualquer explicação é sempre insuficiente. Mas, lembramos que, de facto, Jesus Cristo, por diversas vezes, advertiu os apóstolos da necessidade de serem espontâneos e de não se preocuparem com as perguntas que lhes faziam, porque o Espírito Santo desceria sobre eles e saberiam então como responder: "Gravai, pois, nos vossos corações o não premeditar como haveis de responder; porque eu vos darei uma boca e uma sabedoria à qual não poderão resistir nem contradizer todos os vossos inimigos" (Lucas, XXI, 14-15).
Se analisarmos a nossa vida, verificamos que, por imposição do meio onde estamos integrados, temos vindo a perder esse "dom" da espontaneidade e da imprevisibilidade "Toda a gente vê a véspera", dizia Gurdieff. Tudo já está etiquetado. E assim, a imagem que temos, tanto das coisas como das pessoas, vai ficando embotada, enquistada na nossa memória, sendo com esta permanente interferência do passado que são geralmente elaborados os colóquios, as conferências, as palestras, os discursos, as aulas... "Toda a gente vê a véspera". Contudo, parecerá certamente uma história de loucos, admitir que se possa viver numa sociedade onde fossem abolidas as regras do previsível ou da previdência. Não temos respostas. Mas achamos que merece a pena refletir neste assunto. Que é pois o dom da espontaneidade? Talvez seja a faculdade de receber diretamente a resposta do Universo aos imperativos de cada momento. Talvez seja também a capacidade de se dizer o que for preciso, no momento preciso e a quem for preciso. Talvez, como no exemplo que vamos apresentar a Espontaneidade e a Imprevisibilidade sejam um meio de se alcançar a Perfeição: "No templo de Obaku, em Kioto, estão gravadas na porta as seguintes palavras: "O Primeiro Princípio", cujas letras, desenhadas pelo Mestre Kosen há dois séculos, têm sido consideradas pelos apreciadores deste género de caligrafia uma verdadeira obra prima. Antes de as gravar, Kosen desenhou primeiramente as letras sobre um papel, auxiliado por um discípulo que, previamente, preparou vários litros de tinta. - Esse projeto não me parece bem, disse o discípulo, depois de o Mestre ter feito o primeiro esboço. - E este? - perguntou Kosen. - Este também não. Ainda está pior do que o primeiro. Então, o Mestre Kosen pintou pacientemente oitenta e quatro folhas, sem conseguir satisfazer o discípulo. Por fim, como o jovem se tivesse ausentado durante alguns instantes, disse para consigo mesmo: "Tenho agora uma oportunidade de escapar à sua crítica". Por isso, desenhou apressadamente, e de modo espontâneo, a frase "O Primeiro Princípio", sem se distrair com a presença do discípulo. Este, quando regressou, exclamou maravilhado: - É uma obra prima, Mestre!" E agora uma reflexão da nossa parte: Antes de se alcançar esse elevado grau de Espontaneidade não será necessário efetuar um tarbalho consciente e organizado. Um exemplo muito simples, de que quase todos nós temos experiência, é o da condução de um automóvel. Quanto esforço de aprendizagem foi necessário até que os nossos gestos e movimentos se tornassem espontâneos e, por assim dizer, naturais? Realmente, o que hoje se nos afigura fácil e capaz de fluir livremente sem interditos nem bloqueios,exigiu quase sempre um longo tempo de trabalho, de disciplina e de aprendizagem. "O Génio - disse Edison- é o resultado de um por cento de inspiração e de noventa e nove por cento de transpiração".. Talvez por isso se possa concluir que o dom do imprevisível não deve excluir o que é previsível. A ideia que os Mestres Zen nos pretendem comunicar é a de que a resposta ao problema fundamental da vida é tão evidente que não há necessidade de se procurar uma explicação. Esta evidência, porém, só é sentida como evidência, após uma longa "viagem", ainda que ilusória, até findar, em nós, o processo de busca. Afinal, talvez a resposta esteja tão próxima, tão próxima de nós, que se identifique mesmo com a própria pessoa que a procura. Contudo, raramente temos consciência desse facto. E continuamos a procurá-la:
"Toda a gente ficou surpreendida quando viu Nasruddin Hodja montado no seu burro, indo quase a galope pela aldeia. - Para onde vais? - perguntou alguém. E ele, sempre montado no seu burro, respondeu: - Vou à procura do meu burro." Segundo os Mestres Zen, o estado de Iluminação é tudo quanto há de mais simples. E esperar por ele é nunca o alcançar. Disso nos dá testemunho Bodhidharma, que no século VI trouxe o ensinamento Zen da Índia para o Japão: "Nenhum discurso pode revelar ou formular a natureza do espírito quando foi compreendida por ele. Esperar a Iluminação nada representa. E quem espera não se refere a ela." De acordo com o Zen, a Iluminação não é um objetivo que deva ser alcançado. É a vida vulgar, a vida mais simples, que se apresenta imensamente bela quando não queremos ser protagonistas dos nossos atos nem existe conflito dentro de nós. O Mestre Zen, Hakuin, ao atingir a Iluminação, exclamou: "Oh, admirável maravilha: Eu corto lenha! Eu tiro água do poço!" Talvez o que se acabou de dizer contribua para melhor compreender estas palavras de Buda: "É preciso uma longa viagem para se chegar ao viajante". Se somos religiosos, costumamos pedir a Deus ajuda para encontrarmos a saída dos nossos problemas ou para atingirmos qualquer objetivo na vida. Mas, infelizmente, o nosso pedido é geralmente interesseiro, egoísta. Pedimos, de acordo com a nossa "vontade" e não com a Vontade de Deus. E o que é mais grave: Raramente "pedimos" o que é melhor para nós; mas, o que na aparência, e segundo o nosso limitado entendimento, consideramos que é melhor.
Esta é, pois, uma questão de fundo, e que constitui, não só um ensinamento básico de Jesus Cristo ("Pai, cumpra-se a Tua Vontade e não a minha") mas também um dos ensinamentos principais de todos os Mestres. Assim, o Mestre Sufi, Sa'di de e Shiraz costumava contar esta história: "Um homem desejava ardentemente um filho. Por isso, rezou a Deus para que lhe fosse concedida essa graça. E Deus concedeu-lha. A sua esposa, algum tempo depois, deu-lhe esse filho que tanto desejara. Repleto de felicidade, agradeceu muito a Deus e organizou imediatamente uma festa. Mas, os anos passaram. O seu filho cresceu e, mais tarde, enveredou por um caminho errado. Tornou-se alcoólico, acabando por ser preso, acusado de ter assassinado um homem. No entanto, pouco depois, conseguiu fugir. Ora, como as leis que vigoravam nesse tempo, exigiam que, em caso de fuga de um filho, o pai tivesse de ser preso em seu lugar, o pobre homem teve de cumprir essa pena" Qual o ensinamento que se pode extrair desta história? É o de que aquilo que desejamos não é, quase sempre, o melhor para nós. Ignoramos as linhas mestras que conduzem a vida. Por isso, diz uma máxima Sufi: "Observai a borboleta atraída pela chama: O seu destino é visível para nós, mas ignorado por ela." O Labirinto é, na sua origem, o palácio do rei Minos, em Creta, onde se encontrava o Minotauro, monstro fabuloso que foi morto por Teseu. Este, porém, só conseguiu sair dali com o auxílio do fio orientador de Ariadne.
Tudo isso tem, no entanto, um significado muito profundo, Mas, por ora, o que nos interessa sobretudo evidenciar é o facto do Labirinto ser um símbolo da nossa própria vida. Pois, o difícil percurso, constituído por caminhos que confusamente se cruzam e se entrelaçam, representa o nosso processo de busca interior e a complexidade das experiências por que temos de passar antes de nos conhecermos a nós mesmos. Retrocedemos muitas vezes e mudamos de sentido e de direção. E há muitos sinais que não sabemos interpretar. E assim, o Labirinto revela-nos um percurso que não é direto. Mas, os erros que cometemos até achar a saída, apesar de serem praticamente inevitáveis, não constituem uma fatalidade irremediável. Ao fazermos referência ao Labirinto, ocorre-nos a história da "Bela Adormecida". Todos a conhecem certamente. Quando era criança, gostava muito de a ouvir contar. Nela há diversos intervenientes: Uma princesa que dorme; um príncipe que a procura incessantemente; e um terrível dragão, que o príncipe terá de vencer com a espada do Amor e da Verdade, se quiser ter acesso ao lugar onde dorme a princesa. Mas há um significado profundo nesta história: O príncipe representa o "buscador" que há em todos nós, sempre à procura da saída do "labirinto"; a princesa é a nossa alma adormecida, mergulhada no sono da ilusão, inconsciente da verdade mais íntima que há dentro de si; e o dragão representa as forças que se opõem ao despertar da alma. Isto é, os nossos defeitos, vícios e ilusões... Contudo, o príncipe, que há em nós, na maior parte das vezes, nem sequer se apercebe de que existe uma princesa adormecida à sua espera. Então, ele a procura, mesmo sem saber, por caminhos ínvios, capazes até de o conduzir ao vício e ao crime. Procura-a inconscientemente. Mas, desse modo, a princesa continua adormecida, sem esperança que a venham despertar... Chegará porém o dia em que o príncipe toma consciência da existência da princesa. Do seu encontro com ela, depende a saída do labirinto. Enfrenta então todos os perigos e resolutamente caminha em direção ao local onde a princesa dorme. Mas é preciso vencer o Mal que há dentro de si. Tem de vencer o terrível dragão com a espada do Amor e da Verdade. O combate é tremendo. Mas, o príncipe acaba por sair vitorioso. E, após a vitória, descobre este facto surpreendente: Vê que a princesa esteve sempre consigo. Nunca o abandonou. E o beijo que a desperta é, no fundo, a reconciliação consigo próprio e o despertar da sua alma. Enfim, a saída do labirinto. Talvez o leitor possa agora encontrar alguma relação entre aquilo que se acabou de dizer e este poema admirável de Fernando Pessoa: "Conta a lenda que dormia Uma princesa encantada A quem só despertaria Um Infante que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe, o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino - Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. E, ainda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia. Fernando Pessoa Sim... Ele mesmo era a Princesa que dormia! A advertência de Jesus em relação à hipocrisia dos fariseus tem de estar sempre presente na nossa vida. Temos de ser"puros como as pombas, mas argutos como as serpentes!" Infelizmente, porém, o espírito farisaico continua a prevalecer em todos os aspetos da vida social, usando-se os mais diversos artifícios para se atingirem fins perversos, de que as pessoas bem intencionadas, embora inteligentes, nem sempre se conseguem aperceber. De facto, os "filhos das trevas são mais hábeis do que os filhos da luz", como diz o Evangelho cristão.
"Nasruddin devia dinheiro a toda a gente e não sabia como libertar-se dos credores. Então pediu o conselho de um advogado que lhe disse que a única maneira de se ver livre deles era a de simular a sua própria morte: - Simule que está morto e ninguém mais o vai aborrecer.... Nasruddin seguiu o conselho do advogado e organizou o seu próprio funeral. Depois, meteu-se dentro do caixão. Todos os credores, um de cada vez, vieram, com um ar muito triste, dizer-lhe o último adeus. Mas, quando chegou a vez do décimo credor, este sacou de um revolver e gritou: - Nasruddin, sei que estás morto. Mas, apesar disso, vou dar-te um tiro. Só assim fico satisfeito! Então, Nasruddin saltou imediatamente do caixão e disse: - Espera aí, espera aí... A ti, eu pago tudo!" . Numa Reflexão anterior, evidênciei a importância da mentira em relação a nós próprios. Mas o assunto está longe de estar encerrado, e temos de regressar a ele mais vezes, ainda que alguns Amigos me possam acusar de ser repetitivo. Contudo, devemos ter sempre em consideração de que certas verdades precisam de estar milhares de vezes no pensamento antes de passarem uma única vez à ação.
A mentira a nós próprios, com a intenção deliberada de ocultarmos aos nossos próprios olhos as faltas que cometemos, constitui, como já foi dito, um verdadeiro mecanismo de anestesia mental que, muitas vezes, degenera num grau muito perigoso: a hipocrisia. E sempre que falo de hipocrisia, sorrio, porque me recordo sempre duma história, passada no tempo em que os animais falavam: "Constou que se pretendia matar todos os animais que tivessem a boca grande. Então, a pega, que era uma grande tagarela, foi transmitir imediatamente esta notícia. Quando o hipopótamos a ouviu, encolheu com muito esforço a enorme bocarra e, fazendo beicinho, exclamou com um ar muito penalizado: "Coitadinho do crocodilo!" Cuidado, portanto, com a mentira a nós próprios. Há muitas "razões" para se esconder a "Razão". Disso nos dá testemunho a seguinte parábola: O Lama do Sul precisava de formar espiritualmente os seus jovens discípulos. Para tal, pediu ao Grande Lama do Norte que lhe enviasse um monge suficientemente qualificado para realizar esta missão. Então, o Grande Lama do Norte enviou-lhe cinco monges em vez de um. e as pessoas que tiveram conhecimento deste procedimento, ficaram surpreendidas, perguntando-lhe por que era necessário enviar cinco monges, se bastava apenas um. O Grande Lama respondeu: "Ficarei feliz se, desses cinco monges que enviei ao Lama do Sul, um, pelo menos, seja capaz de cumprir a missão que lhe foi pedida." Partiram então os cinco monges. E, passados alguns dias de viagem, apareceu um mensageiro que foi ao encontro deles, dizendo que tendo falecido um sacerdote da sua aldeia, seria necessário que outra pessoa ocupasse o seu lugar. Como a aldeia era aprazível e o vencimento que se ia auferir era bom, um dos monges comentou: "Não serei um bom budista se não ficar aqui para servir o povo". E saiu do grupo. Prosseguiram os outros quatro. Passados alguns dias, achavam-se noutro país; e, pouco depois, no próprio palácio do rei desse mesmo país. Este, tendo simpatizado com um dos monges, quis que ele casasse com uma das suas filhas e viesse a ocupar o trono após a sua morte. Enamorou-se o monge da princesa e disse para consigo mesmo: "Não serei um bom budista se deixar escapar esta oportunidade, pois não há melhor maneira de servir este povo do que tornar-me rei". E saiu do grupo. Os outros três continuaram a viagem e, pouco tempo depois, encontraram-se num lugar belo e arborizado, junto de uma modesta cabana. Ali vivia uma bonita jovem, cujos pais tinham sido assassinados. Quando os viu chegar, a moça deu-lhes abrigo e agradeceu a Deus por lhe ter enviado aqueles monges. No dia seguinte, um deles decidiu ficar ao lado da rapariga, dizendo para consigo próprio: "Não serei um bom budista senão sentir compaixão por esta moça". E saiu do grupo. Restavam dois monges. Continuaram a viagem e chegaram a uma aldeia onde os habitantes tinham abandonado a sua religião e perdido a fé, ficando às ordens de um perverso guru. Então, um dos monges pensou: "Não serei um bom budista se não ficar aqui, junto desta gente, para lhes restituir a sua antiga fé." Assim, somente o quinto monge chegou à presença do Lama do Sul. Tinha razão portanto o Grande Lama do Norte." |
JOSÉ FLÓRIDOREFLEXÕES Histórico
Março 2017
Categorias
|