A Universidade moderna tem sido (como já tenho dito diversas vezes) uma conspiração permanente contra o universal. É preciso que os principais responsáveis pelo sistema de ensino não estejam somente interessados na especialização e na multiplicação das licenciaturas. A fragmentação do saber, se bem que tivesse sido, e ainda seja, uma consequência inevitável da marcha da história, conduz também à fragmentação individual e social. Basta observar, por exemplo, as dificuldades de algumas pessoas quando, desconhecendo o pensamento e a linguagem de outras que conheceram recentemente, não sabem como dirigir a conversação.
Esta fragmentação limita a dinâmica e a amplitude do convívio humano. E, às vezes, tem de haver até secções diferentes para os que falam de política, de economia, de medicina, de educação, de criminalidade... e até mesmo das frivolidades do mundo da moda. Por isso, esta limitação terá agora de ser contrariada por um sentido mais profundo de unidade e por uma maior abertura à "vida conversável". São necessárias "referências comuns" mais abrangentes. E ainda que se possa dizer que a Política seja (ou deva ser) uma das principais referências comuns, à volta da qual gravitem os nossos interesse e, consequentemente, devam gravitar também as nossas conversas, o facto é que não é isso que se verifica. Contudo, há uma referência comum que lidera, de longe, todas as outras: O Futebol. O Futebol deve a sua promazia a esse facto . Vemos como pessoas dos mais diferentes estatutos sociais são capazes de convergir nesse fenómeno mágico do futebol. E todos, ou quase todos, quando se encontram ou reunem, começam logo a beber a água da mesma fonte, esquecendo ou ignorando as diferenças de cultura ou de inteligência que os separam. Porque todos - mesmo os mais ignorantes em matéria de "futebolês" - se mostram capazes de discutir com os mais "sábios" a importância daquele golo "marcado de cabeça" ou de criticar a atuação do arbitro que, em determinada situação do jogo, deveria ter assinalado uma "grande penalidade"... Mas, há ainda outras referências comuns, de menor relevância, como, por exemplo, o estado do tempo: "Hoje, parece que vai chover.... Mas para a semana, vai estar bom tempo... Podemos ir para a praia..." E também há aquelas "conversas para boi dormir", como dizem os Amigos do Brasil, que, não levando a parte alguma, servem no entanto para encobrir a nossa incapacidade, ou a nossa impossibilidade, de dizer coisas mais sérias e valiosas. Mas, afinal, tudo, tanto no Universo como na vida humana, se encontra numa relação de interdependência. Disse um grande Poeta: "Quando se colhe uma flor há uma estrela que sente". Não faz, por isso, sentido, que façamos das nossas relações sociais compartimentos separados. Agostinho da Silva, em "Educação de Portugal, foi esclarecedor: "Reservemos para nós a tarefa de compreender e de unir; busquemos em cada homem e em cada povo e em cada crença não o que nele exista de adverso, para que se levantem as barreiras, mas o que exista de comum e de abordável, para que lancem as estradas de paz; empreguemos todas as nossas energias em estabelecer mútuo entendimento; ponhamos de lado o instinto de particularismo e de luta; alarguemos a todos a nossa simpatia."
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Provavelmente, houve muitos santos que não foram canonizados, nem nunca o serão certamente, porque, na realidade, não chegaram a fazer "milagres" ou, porque se os fizeram, passaram completamente despercebidos, embora pudessem revelar a santidade do Amor e do espírito de serviço até ao limite das suas forças para com aqueles que necessitavam do seu auxílio. Mas, o oposto também tem acontecido: Houve, com certeza, outros que foram canonizados apenas por supostos "milagres" que, afinal, nunca aconteceram, porque a ciência, mais tarde, provou que se deviam a causas absolutamente naturais.
A palavra "milagre", como já tive oportunidade de dizer, deriva do termo latino "mirabilia", que significa propriamente "aquilo que é digno de ser visto". Neste sentido, há muitas coisas que são dignas de serem vistas, podendo, por isso, serem considerados "milagres", como, por exemplo, o nascimento de uma criança ou o segredo de uma pequenina semente, potencialmente capaz de se transformar numa árvore gigante. Só não são considerados "milagres", porque o milagre, para nós, é sempre algo que está relacionado com factos sobrenaturais, ainda que não me pareça sempre fácil distinguir o natural do sobrenatural. Mas, vamos ver como é que a Tradição gnóstica ortodoxa analisa este assunto: Do seu ponto de vista, o milagre consiste na interferência de leis de um Cosmos superior no nosso Cosmos. E essa interferência deve-se muitas vezes, por razões difíceis de explicar, à presença de um agente catalisador. Neste caso, Alguém, em que o elevado nível de realização espiritual possibilite essa interferência e, consequentemente, a efetivação de um facto extraordinário. Isso significa que, no fundo, as leis subjacentes ao milagre são leis do Universo, do mesmo modo que as leis da natureza terrestre também o são. Mas, porque as desconhecemos, não as sabemos explicar nem interpretar. Impõe-se, no entanto, um melhor esclarecimento. E, por isso, retomamos uma questão que já foi por nós abordada. Segundo a Tradição gnóstica, o Macrocosmos é composto por sete Cosmos, correspondendo às sete notas musicais, e constituindo aquilo que se designa pela Grande Oitava cósmica do nosso Raio de Criação: - Protocosmos - correspondente ao DO ("DOminus" - Deus. Criador do Universo); - Aghiocosmos - correspondente ao SI ("SIdereus orbis" - O mundo sideral. Conjunto de todos os mundos); - Megalocosmos - correspondente ao LA ("LActeus orbis" - Via Láctea); - Deuterocosmos - correspondente ao SOL ("SOl" - A nossa estrela); - Mesocosmos - correspondente ao FA ("FAtum" - O mundo planetário, em relação ao qual a Astrologia tem atribuído o Fado ou destino da humanidade); - Tritocosmos - correspondente ao MI ("MIxtus orbis" - A Terra, onde se verifica a "mistura" do Bem e do Mal); - Tessarocosmos - correspondente ao RE ("REgina astris" - A Lua. Regente do destino, segundo os antigos). Esta é a Oitava descendente ( do Absoluto para o homem). Mas há também a Oitava ascendente (do homem para Deus). E neste caso, o DO inicial é substituído pelo UT (antiga nota musical DO). UT vem de "Uterus", porque o "útero" representa a porta do nascimento segundo a carne. Partindo do DO inicial, o divino poder criador manifesta-se através dos sete escalões referidos, e a Lei universal, que se expressa univocamente no primeiro escalão (Protocosmos), ramifica-se progressivamente, à medida que vai decorrendo o processo descendente através dos outros escalões do nosso Raio de criação. Cada Cosmos tem, porém, as suas próprias leis. Mas, não deixa de exercer, numa relação de contiguidade, a sua influência sobre os outros. E, por vezes, como já assinalámos, há uma interferência das suas leis. No nosso Cosmos, essa interferência pode ser causada pela presença de uma consciência mais elevada, como a de Cristo ou de Buda, verificando-se então fenómenos que a ciência, por enquanto relacionada somente com as leis do Cosmos terrestre (o Tritocosmos), não consegue explicar. Não estamos, evidentemente, perante um assunto de fácil entendimento. Mas, não creio que se deva maximizar o "milagre". E atribuir aos grandes Mestres da humanidade o conceito de "milagreiros" é, a meu ver, minimizá-los. Por certo, há ainda muito mais a dizer. E todos temos o direito e o dever de nos questionarmos sobre este assunto. Será portanto aceitável a explicação apresentada pala Tradição gnóstica ortodoxa? Será mesmo essa a génese do milagre? Antigamente, havia Cafés que eram verdadeiros centros de convívio. Alguns eram mesmo autênticas Universidades livres, como o Café Colonial, nos Anjos, que eu considerava uma espécie de dependência da minha casa. Quando saía, muitas vezes cansado e pesaroso do meu emprego, ou mesmo depois de já ter jantado, encontrava sempre ali um refúgio mágico, uma convivência cordial de estudantes, de professores, de escritores e de jornalistas. E, dentre os mais assíduos, saliento as figuras que pontificavam pelo saber e pela experiência: O José Marinho, pensador platónico, saudosista e metafísico, e o Álvaro Ribeiro, filósofo de fundo aristotélico. Mas havia mais: o António Quadros, o Orlando Vitorino, o Jorge Preto, o António Telmo, o Luís Espírito Santo, o Fernando Sylvan, o António Braz Teixeira, a Ana Hatherly, a Natália Correia, o Luís Furtado, o Fernando Vasconcelos, o Luís Zuzarte, o Alberto Gonçalves... E apareciam também, de vez em quando, o Delfim Santos e o Sant' Anna Dionísio... E, foi a partir de quase todos estes pensadores que se criaram dois órgãos de divulgação literária: O "57" e, mais tarde, a revista "Espiral".
Quando nesses convívios o diálogo não atingia sempre o mesmo nível e parecia declinar, aproximando-se da superficialidade ou mesmo da mediocridade, o José Marinho dizia, com um sorriso irónico: "Isto, nem sempre pescada, nem sempre sardinha..." . Dele, recordo a sua presença de Mestre e reavivo a gratidão de ter sido por seu intermédio que tive o privilégio de conhecer Agostinho da Silva. Dele, recordo também a sua "Teoria do Ser e da Verdade", livro tão laboriosamente e demoradamente escrito, sobre o qual quis também apresentar uma leitura. E memorizei mesmo, até ao dia de hoje, o parágrafo inicial, não porque disponha de uma memória acima do normal, mas porque aquelas palavras, genialmente alinhadas, que o compunham eram, por todos nós, repassadas inúmeras vezes: "Aquele a quem foi dado ser plenamente como a quem e negado todo o parcial ser e, no ver do que é, infinitamente ultrapassa todo o ver e saber finito, esse, no mesmo instante em que frui a mais pura alegria, sabe para sempre toda a verdade." O Marinho, como quase toda aquela gente que o acompanhava, amava muito (ou mesmo em demasia) as palavras e, por isso, tentava "dizer o indizível". Considerava esse primeiro parágrafo a sua "coroa de glória", que era talvez a síntese e a perceção de tudo o que seria desenvolvido posteriormente. E quando, certo dia, lhe telefonei a dizer que o interpretara como expressão da "Parábola do Filho pródigo", ficou muito interessado e quis imediatamente falar sobre esse assunto. Encontrámo-nos então num Café próximo do local onde residia e, algum tempo depois de iniciada a conversa, declarou: "Quando você me apresentou o sua interpretação pelo telefone, pensei para comigo mesmo: "Estás completamente a leste... Mas, agora vejo que foi mais longe do que eu pensava... e acho até que a sua leitura é muito interessante. Veja lá se me ajuda a perceber este livro!" Ora, este pedido de auxílio do autor para a compreensão de um livro, por ele próprio escrito, é quase um fenómeno hilariante. Contudo, justifica-se, se conhecermos a natureza e a dimensão do seu pensamento: José Marinho sempre me pareceu acreditar que aquilo que escrevia estava acima da sua condição humana. Tudo lhe era, de certo modo, revelado, sendo ele apenas um intermediário consciente dessa revelação. Mas, a conversa não se fixou demoradamente nesse assunto. Derivámos para o Fernando Pessoa e para o Teixeira de Pascoais, que eram os Poetas relevantes da "Filosofia Portuguesa". O Marinho era "Pascoalino". Tinha sido amigo de Pascoais e nutria por ele uma admiração quase sobrenatural. E sempre que confrontava Pessoa com Pascoais, ponderava: "Pessoa "pessoliza" a Poesia; Pascoais deixa-se atravessar por ela..." E já no fim do nosso encontro,declarou: "Você soube demasiadamente cedo certas coisas... E agora tem de sofrer as consequências...". Mas, só muitos anos depois, consegui compreender as "consequências" a que o Marinho se estava a referir. É que tem de haver um tempo para tudo... e se nos antecipamos, quase sempre temos de pagar, mais tarde, a fatura da nossa antecipação. Do Álvaro Ribeiro não tenho uma recordação tão precisa. Mas nunca esqueci o facto de, certo dia, me ter advertido pela irreverência da minha juventude. Imaturamente, queria emitir opiniões sobre todos os assuntos, antes de, primeiramente, aprender a pensar e a escutar os mais sábios e os mais experientes. Hoje, dou-lhe razão. E, por isso, sempre tentei fazer ver aos meus alunos o quanto é precioso ser recetivo, antes de se ser prematuramente, e precipitadamente, emissivo, embora reconheça que a mais importante aprendizagem é, não a de escutarmos os outros, mas a de nos "escutarmos a nós próprios", ouvindo a voz do nosso Mestre interior. É nisso que consiste realmente o despertar da "Intuição", palavra que significa propriamente, e de acordo com o seu étimo, "ouvir de dentro". Mas foi, como já referi, o José Marinho que me apresentou o Agostinho da Silva. Para isso, convidou-me para assistir e tomar parte numas conferências que se realizavam no IADE, cujo diretor, segundo creio, era o Lima de Freitas. No dia aprazado, vi entrar na sala um homem modestíssimo, quase um campónio, mas irradiando uma fascinante serenidade. Era o Agostinho. Cumprimentou as pessoas presentes e, depois, dirigindo-se a mim, perguntou: "E este senhor, quem é?" O Marinho fez a apresentação. E o Agostinho da Silva, que não me conhecia de lado algum (nem eu a ele), declarou com um sorriso imensamente franco: Tem graça... era mesmo consigo que eu queria falar..." |
JOSÉ FLÓRIDOREFLEXÕES Histórico
Março 2017
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