Uma Parábola Budista:
"O monge Malunkia, preocupado pelo facto de Buda não abordar questões de índole metafísica, tais como a existência ou não existência de Deus, o caráter finito ou infinito do Universo, ou a continuidade da vida depois da morte, indagou ao Sábio o porquê desta falta. E Buda respondeu: - Escuta, Malunkia: Certa vez, um homem foi alvejado por uma seta venenosa; e os amigos, vendo-o à beira da morte, foram chamar urgentemente um médico. O ferido, porém, quando viu chegar o médico, disse que só tomaria o contraveneno e deixaria extrair a seta se, primeiramente, o informassem, em pormenor, do nome da pessoa que a lançara, da sua idade, da sua morada exata, do motivo por que assim procedera, e ainda das características do arco que utilizara. Que teria então acontecido a esse homem? - Provavelmente deve ter morrido, antes de ver esclarecidas as suas dúvidas - respondeu Malunkia. - Da mesma maneira - continuou Buda - as respostas a perguntas sobre o caráter .finito ou infinito do Universo, sobre a existência ou não existência de Deus, ou sobre a natureza da alma, não nos libertam do sofrimento. Ora, como precisamos de nos libertar do sofrimento nesta mesma vida, não te preocupes, pois, com as questões que eu não ensino, mas apenas com as que eu ensino, que são: a consciência do sofrimento; o reconhecimento da causa do sofrimento; a cessação do sofrimento; o caminho da cessação do sofrimento. " Primeira Nobre Verdade: A consciência do sofrimento Este é evidentemente o primeiro passo. Parece fácil. Mas, por muito que nos custe a admitir, muitos de nós não são capazes de dar este primeiro passo, porque não têm, não querem, ou não podem ter, verdadeira consciência do sofrimento. Projetados para a periferia do nosso ser, estamos cada vez mais distantes de nós próprios. Trabalhamos incansavelmente para melhorarmos as condições de vida, para termos mais conforto e comodidade, mas, por estranho que pareça, não nos preocupamos com a própria vida. Compreende-se assim por que razão este primeiro passo não seja tão fácil como parece à primeira vista. Segunda Nobre Verdade: Reconhecimento da causa do sofrimento: Este segundo passo é ainda mais difícil de dar. Atribuímos geralmente a origem do nosso mal a causas secundárias. Admitimos quase sempre aos outros a causa e a culpa de tudo que nos acontece; e, só excecionalmente reconhecemos em nós próprios a causa fundamental do nosso sofrimento. Contribui para isso a tendência frequente para "mentir a nós mesmos"; o que constitui um verdadeiro mecanismo auto-tranquilizador de anestesia mental que, por vezes, degenera num tipo extremamente grave de mentira que envenena todo o nosso ser - a hipocrisia. É no entanto oportuno salientar que o "Decálogo", que impõe ao homem a observância dos Mandamentos, não o proíbe de mentir senão num pequeno setor das relações humanas: o do falso testemunho; e ainda quando esse falso testemunho vai contra o próximo (Deuteronómio, V, 20). No fundo, há o reconhecimento de que a vida social não seria possível, nas condições atuais de progresso espiritual, sem a utilização da mentira, dentro daqueles quadros permitidos pela moral e pelo bom senso. Efetivamente, nem todas as mentiras são ameaças ao equilíbrio do mundo. Há não só as mentiras inofensivas, mas até aquelas que se aceitam do ponto de vista ético, como as que visam evitar um desgosto ou qualquer outro sofrimento psicológico, em casos, por exemplo, de doença ou de morte. Porém, quando "mentimos a nós próprios", com o propósito deliberado de ocultar aos nossos olhos as nossas intenções e os nossos defeitos, estamos a travar a marcha do nosso desenvolvimento interno, só possível numa relação contínua com a Verdade. Por mais que tentemos fugir à realidade, a origem do nosso mal encontra-se principalmente em nós próprios. Mas, este reconhecimento não exclui a responsabilidade dos governantes e da sociedade em geral pelos infortúnios que atingem a humanidade. Com efeito, seria insensatez, insensibilidade e hipocrisia dizer a todas as pesoas que se debatem com graves problemas: "Mude a sua maneira de pensar e tudo mudará na sua vida". Em situações de miséria, a sociedade - que somos todos nós - tem de intervir. Tem de intervir, não só pelas palavras e pela força do espírito, mas também pela ação e pelo apoio material. Como podemos esperar que alguém possa mudar para melhor, quando lhe faltam alimentos, roupas e habitação? Contudo, do ponto de vista do Budismo, é ao "eu" da Personalidade que se deve, sobretudo, pedir responsabilidade pela situação de sofrimento. É o "eu" da Personalidade que, sendo a causa principal das nossas limitações, tem de ser corrigido e aperfeiçoado, e assumir, por fim, a renúncia, para que seja possível a emergência de uma realidade mais ampla, mais profunda e mais elevada, o Nirvana, onde o ser se encontre livre de desejos, de obsessões e de tormentos. Terceira Nobre Verdade: A cessação do sofrimento Porque sofremos? O sofrimento tem alguma razão de ser? O sofrimento pode extinguir-se? O sofrimento é um sinal, uma advertência de que existe qualquer coisa errada na nossa vida. Sem o sofrimento não teríamos certamente a perceção de uma doença ou de uma infeção. Deixaríamos então que o mal avançasse e invadisse todo o organismo até nos causar provavelmente a morte. A dor é portanto um aviso, uma benção. Dá-nos a oportunidade de corrigir a tempo algo que precisa de ser corrigido. É por isso que o sofrimento e a sabedoria andam quase sempre associados. Não pelo sofrimento em si mesmo. Mas pelo trabalho que temos de realizar para o ultrapassar e pela resposta que temos de encontrar em nós próprios para contornar o obstáculo que nos prende à ilusão. Temos de admitir que o sofrimento seja um sinal de algum desequilíbrio. Mas, no cômputo geral de todas as coisas, esse Equilíbrio poderá ser restabelecido, mediante uma relação de sintonia com a Ordem universal. Por outras palavras - e de acordo com o Evangelho cristão - é preciso "cumprir a Vontade de Deus e não a nossa". Quarta Nobre Verdade: O caminho da cessação do sofrimento. Nisso consiste a Nobre Senda Óctupla: I- Reta compreensão; II - Reto propósito; III - Reta palavra; IV - Reta conduta; V - Retos meios de subsistência; VI - Reto esforço; VII - Reta atenção; VIII - Reta meditação. O cumprimento destas normas conduz ao Amor Objetivo (1), expressão suprema da realização humana, só possível, segundo o Budismo, com a extinção da Personalidade, destinada a perpetuar-se em sucessivis renascimentos (Sasmsara), causadores de dor, de angústia, de abatimento, de velhice e de morte.. Como não é difícil de compreender, tais normas - ainda que propostas de outro modo e com diferente terminologia - constituem o objetivo de todas vias de realização: Um profundo e vasto percurso de Beleza, de Amor e de Verdade. (1) Ao contrário do amor "subjetivo", o Amor Objetivo (expressão usada pala Tradição gnóstica ortodoxa) não admite interferência nem condições propostas pelo amante. Amar "objetivamente" é amar indistintamente o belo e o feio, o bom e o mau, o santo e o pecador, o amigo e o inimigo. É amar como a Luz, que permanece sempre "luz", sem se deixar vencer pelas trevas ou corromper pela matéria impura.
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JOSÉ FLÓRIDOREFLEXÕES Histórico
Março 2017
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