Temos estado a falar sobre o "sono e o "sonho", como um tema comum às diversas tradições. Contudo, ainda que se trate de um assunto da maior importância, o seu sentido mais profundo passa geralmente despercebido a grande parte das pessoas que, continuando a "dormir", imaginam no entanto que se encontram completamente "despertas". Claro que, em relação a isso, poder-se-á argumentar ser precisamente por esse facto que se não tem a clara consciência de se estar "adormecido". Mas nós não desistimos. Apesar de também não sermos imunes à influência deste "sono" coletivo, não desistimos de o combater.
O grande Iogui do século XIX, Ramakrishna, para mostrar que a vida, tal como é vivida pela maior parte de nós, não passa afinal de um sonho, costumava contar esta parábola: "Um pobre pescador perdeu o seu único filho, depois de gastar tudo quanto tinha para o salvar. Porém, enquanto a mãe estava inconsolável, ele parecia insensível. Por isso, a mulher, surpreendida e ao mesmo tempo chocada com a atitude do marido que não vertia uma só lágrima, observou-lhe: "O nosso filho morreu. E tu pareces indiferente. Como podes ser assim tão insensível?" Então, o pescador respondeu: "Sabes porque não choro? Porque esta noite sonhei que era rei e que tinha sete filhos. Quando acordei, vi que se tratava de um sonho e que não tinha nenhum filho. Afinal, foi como se tivesse perdido, ou tivessem morrido, os sete filhos do meu sonho! Agora estou acordado, mas continuo a sonhar... Então, se estou a sonhar, por que devo chorar pelo único filho que perdemos e não pelos outros sete que perdi quando despertei?" A mensagem desta parábola poderá parecer exagerada ao leitor. Mas, à luz dos ensinamemtos védicos, expressa uma profunda sabedoria. Diz o Bhagavad Gîta que "o verdadeiro Sábio não deve chorar nem pelos vivos nem pelos mortos". Porqque a morte e a vida fazem parte do mesmo jogo! Reconhecemos, no entanto, que tal atitude não pode ser exigida ao ser humano no seu estado atual de evolução. Por isso, é mil vezes preferível sermos autênticos, deixando exteriorizar o impulso, por vezes imprevisível e incontrolável das nossas emoções, do que que expressar o fingimento de comportamentos artificiais ou fictícios.
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a "Orar e vigiar" é uma das mais importantes mensagens do Evangelho cristão. Mas, esta mensagem esteve também sempre presente no pensamento e na doutrina de todos os verdadeiros Mestres. Disse Heraclito de Efeso (540 ou 480 a. C.):
"Os homens são tão esquecidos e desatentos, nos seus momentos de vigilância sobre o que se passa à sua volta, como o são durante o sono. Os tolos, embora oiçam, são como surdos. A eles é aplicado o provérbio de "sempre presentes mas sempre ausentes". (...) Os vigilantes possuem um mundo em comum, mas os que dormem têm, cada um, um mundo privado. Aquilo que vemos, quando despertos, é a morte. Quando adormecidos, vemos os sonhos." "Os vigilantes possuem um mundo em comum. Mas os que dormem têm, cada um, um mundo privado". Meditemos nestas sábias palavras. E, a pouco e pouco, níveis mais elevados de consciência se vão desvelando... Porque estamos perante uma questão de fundo: "A verdade é só uma para os que estão "despertos"; porém, há muitas "verdades" para os que "dormem". Mas, que pretende dizer Heraclito com o facto dos "despertos "terem a visão da "morte", enquanto os outros vêem somente os sonhos? É que quem está "desperto", (no sentido que está a ser atribuído a esta palavra), não vive num mundo de ilusões. Sabe que a vida física é limitada e, só por ignorância ou estultícia, fazemos dela o nosso único objetivo. Receamos olhar frontalmente para a morte, porque ainda não adquirimos a perspetiva mais elevada da vida, que consiste em compreender que a morte e a vida fazem parte do mesmo jogo. São irmãs inseparáveis. São interdependentes. Por isso, ver a morte não é, como se possa pensar, à primeira impressão, cair num estado mórbido de angústia e de tristeza. Ver a morte é vencer o medo de enfrentar o desconhecido e o mistério da própria Vida, a fim de se alcançar a libertação e a Consciência Também os ensinamentos de Buda insistem na necessidade de "Vigilância". E, em termos semelhantes aos de Heraclito, se diz no "Dhammapada": "A vigilância é a direção para a Vida. O tolo dorme como se já estivesse morto. Mas o Mestre está desperto e vive para sempre. Ele observa; Ele é puro. Como Ele é feliz! Pois, Ele vê que vigilância é vida. Como Ele é feliz, seguindo o caminho dos despertos. Com grande perseverança, Ele medita em busca da liberdade E felicidade." Perante a convergência destes dois textos (o de Heraclito e o de Buda) é ou não verdade que os "despertos" têm um mundo em comum? O tema do sono e do sonho é no entanto comum a todas as tradições. Jesus advertia frequentemente os seus discípulos da necessidade de "orar e vigiar" e, por diversas vezes, disse que os encontrara "dormindo". E nesta mesma ordem de ideias, também o Mestre Chuang Tzu costumava dizer que certa noite sonhara que era uma borboleta. E, de manhã, ao acordar, tomou consciência de que não era nenhuma borboleta, mas, sim, Chuang Tzu. Contudo, como sabia que a vida não passa de um sonho e que, pelo facto de acordarmos de manhã, não deixamos de continuar a dormir e a sonhar, limitou-se a dizer: "Afinal, não sei se foi Chuang Tzu que sonhou que era uma borboleta ou se é, agora, a borboleta que está a sonhar que é Chuang Tzu..." " Retomamos hoje a história que deu início a estas Reflexões. Refiro-me à história do Mestre Zen, Hakuin, que, em resposta à pergunta do seu discípulo sobre o "segredo" do Zen, lhe perguntou, por sua vez, se ele já tinha ouvido um pássaro a cantar. Tendo o discípulo respondido afirmativamente, o Mestre declarou: "Se tens a certeza que já ouviste um pássaro a cantar, então já sabes qual é o segredo do Zen".
Parece que o "Zen" anda agora um pouco na moda... Há mesmo quem pense que é possível encontrar certos "momentos" Zen polvilhando o desvario da vida atual...Mas, o que é que se pretende dizer com "momentos" Zen? Ora o Zen não é uma moda nem é constituído por "momentos"... O Zen é a própria Vida; e não a sobrevivência. Por isso, enquanto estivermos apenas ocupados com a sobrevivência, não conseguiremos ouvir um pássaro a cantar; enquanto estivermos apenas preocupados em expressar as nossas opiniões e em justificar todos os nossos atos, não conseguiremos ouvir um pássaro a cantar; enquanto estivermos somente interessados com o culto da personalidade, não ouviremos um pássaro a cantar... Porque, um pássaro quando canta não pretende fazer valer o seu ponto de vista, nem quer encontrar uma explicação para o mistério da vida. Ele é a própria Vida. É importante refletir no facto da nossa cultura ter sobrevalorizado excessivamente o intelecto(mas, sem pretendermos dizer com isso que o intelecto não deva ser desenvolvido e organizado) Os nossos sistemas de ensino (ainda que possam dizer o contrário) têm dado quase sempre preferência ao desenvolvimento da mente em detrimento de outros aspetos como, por exemplo, a vida emocional e a atividade criadora. Contudo, o entendimento da realidade deve passar pelo crivo desses valores. E de outros: Assim, sem humildade, modéstia e, principalmente, verdade para com nós próprios, o intelecto apenas pode constituir um sério obstáculo à evolução harmoniosa da alma humana. Disse a este respeito o Mestre Agostinho da Silva: "...acima de tudo têm os intelectuais de encontrar a virgindade de espírito e a humildade e a clara vontade de, pondo o resto de parte, cumprir a tarefa basilar de se ofertarem aos desígnios de Deus, e com todo o gosto quanto mais desconhecidos forem eles". Talvez seja à luz do que se acabou de dizer que melhor se compreende o sentido deste provérbio tibetano: "Se fores demasiadamente inteligente, é provável que nunca chegues a compreender nada". É também importante refletir nestas sábias palavras de Chuang Tzu, expressas muitos anos ante de Cristo: "Todos os homens lutam por aprender o que não conhecem; mas nenhum busca entender melhor o que julga conhecer. Todos se esforçam por desacreditar o que desfrutam, mas ninguém quer desacreditar o que não desfruta. É por isso que existe o caos. Por causa do conhecimento (intelectual) o esplendor dos corpos celestes diminui; o poder da terra e da água é arrasado; e a inflência das quatro estações é totalmente alterada. E por causa dos intelectuais, não há um pequeno verme sequer que se mova na terra ou que voe pelo ar que não tenha perdido a sua natureza original. Esse é sem dúvida o caos que se introduziu no mundo por causa do excesso de erudição". Reflita-se, pois, no que aqui é dito. E, tendo em conta as devidas proporções, procure-se encontrar alguma relação com a época atual. Apesar do Sufismo conter a essência das principais religiões, há aspetos específicos que caracterizam o seu método. Entre eles, é costume atribuir especial relevância à Dança cósmica dos dervixes, porque a Dança, para os Sufis, expressa melhor do que as outras artes, a Criação divina. Na verdade, enquanto, na expressão das outras artes, o artista não precisa de estar presente, na Dança, pelo contrário, tem de estar sempre presente. Assim, a Dança e o dansarino são inseparáveis e, desse modo, se representa a imanência e a transcendência de Deus. Mevlana, também conhecido por Rumî, foi o primeiro dervixe dançarino. A música e a dança constituiram a forma de exprimir o seu reconhecimento a Deus. Ensinou então aos seus discípulos como deveriam proceder: Com os pés sobrepostos, o esquerdo ritualmente sobre o direito, a mão direita no ar para receber o dom do céu, e a espada virada para baixo para difundir o saber. Depois, os dançarinos deveriam rodopiar em torno de um centro, à semelhança dos planetas gravitando à volta do Sol.
Um outro aspeto característico do Sufismo são as suas máximas e as histórias engraçadas de Nasruddin Hodja, personagem lendária em todo o Médio Oriente, que já citámos diversas vezes nas nossas Reflexões. As "graças" de Nasruddin correspondem a uma espécie de retrato caricatural da humanidade, e devem ser compreendidas em diversos níveis de profundidade. A subtil perceção do Sufi permite-lhe alcançar um nível de compreensão inatingível para o comum das pessoas. Por isso, não se deve ver nestas histórias apenas um divertimento, à semelhança do que acontece com a maioria das histórias anedóticas contadas por nós em momentos de ociosidade. Na realidade, todos os recursos de comunicação se justificam desde que permitam que o Conhecimento chegue a um número cada vez maior de pessoas. Temos citado algumas histórias de Mullah Nasruddin Hodja, de quem já dissemos tratar-se de um sufi turco que viveu no século XVII. Porém, como provavelmente alguns leitores não conhecem o Sufismo, decidimos apresentar alguns aspetos que o caracterizam: O Sufismo surgiu no século VII d. C., constituindo, por assim dizer o aspeto interno do Islamismo(1), cujo objetivo é a purificação do coração. Os seus membros são místicos muçulmanos que se organizaram à margem das autoridades ortodoxas que os censuravam pelo seu individualismo e pela aversão a um ensino corânico sistematizado. Acabaram no entanto por lhes reconhecer importância no plano da espiritualidade, permitindo por isso a abertura (cerca de 980 d. C.) de uma cadeira oficial de Sufismo na mesquita do Cairo. Segundo a opinião do Professor R. A. Nicholson, considerado o maior especialista europeu do Sufismo, este é indefinível. Contudo, o professor Nicholson não deixa de referenciar que não se trata de uma religião propriamente dita, mas de um modo universal de pensar. Um segundo aspeto que o caracteriza é o da liberdade absoluta, como condição indispensável à salvação. E ainda um terceiro aspeto, talvez o mais importante, é o de colocar o Amor acima de de tudo. Assim, o Sufismo é principalmente uma Filosofia do Amor que, no seu mais elevado expoente, se identifica com Deus. Só o Amor, que é o próprio Deus - e não o Intelecto - permite alcançar o divino: Al-Sabbâk conta que "Deus, depois de criar o Intelecto, lhe perguntou: "Quem sou Eu?" E o Intelecto emudeceu. Então, Deus colocou-lhe sobre a vista o colírio da luz e da sua unicidade. E o Intelecto, abrindo os olhos, disse: "Tu és Deus, e não há outra divindade a não seres Tu". Pois, não competia ao Intelecto conhecer Deus - concluiu Al-Sabbâk - a não ser por intermédio do próprio Deus". Ao contrário do Hinduísmo - que desenvolveu vários métodos espirituais, separando o "jnâna" (via do Conhecimento). o bhakti" (via do Amor) e o "Karma" (via da Ação) - o Sufismo tende para uma síntese destes três métodos. Mas, é o Amor que está acima de tudo e que é, simultaneamente Conhecimento e Ação. E se existem diferenças, de acordo com cada Confraria,(tarîqa), em linhas gerais podemos dizer que o método do Sufismo assenta em quatro aspetos fundamentais: A invocação (dhikr) incessante a Deus, de modo a esquecer tudo o que não é Ele; a meditação (fikr), que só tem valor se abrir o acesso ao "dhikr"; a guarda do coração, que resulta da ação recíproca da meditação (fikr) e da invocação (dhikr), de onde surge a "visão do coração", que permite captar a Essência divina; a preservação da ligação com o Mestre (Sheik), que exige a obediência total do discípulo em relação a tudo que o Mestre dita. Apesar do Sufismo ser, como é evidente, uma Via interior, não exclui, de modo algum, as regras exteriores presentes no Corão. Antes, pelo contrário, considera-as indispensáveis, mesmo para o homem mais santo e mais justo. Diz um tratado antiquíssimo: "Uma regra não animada pelo espírito da Realidade não tem valor; da mesma maneira que todo o espírito da Realidade não estruturado pela Lei é incompleto". Mas, como Via interior, as experiências dos místicos Sufis não diferem essencialmente das experiências dos místicos das outras religiões. Assim, ao entrar em comunhão com Deus, o grande místico Sufi, al-Hallâj, exlamou: "Anna-lhaqq"(Eu sou a Verdade!"). O que nos leva imediatamente a recordar a afirmação de Jesus: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida". Evidentemente que afirmações desta natureza não costumam ser bem aceites. Por isso, Hallâj foi condenado pelos muçulmanos a uma morte cruel, do mesmo modo que Jesus foi condenado pelo seu próprio povo. Nûri, discípulo de Junnayd, dizia que o Sufi "é alguém que se não liga a nada nem é ligado por nada". É o que se costuma designar por "pobreza em espírito", que encontra não só correspondência na atitude de "desapego" do Budismo, como também no ideal expresso por Jesus no Sermão da Montanha ("Felizes os pobres em espírito porque deles é o reino do céu"- Mateus, 5-3), ideal seguido apaixonadamente por S. Francisco de Assis, o qual, segundo se diz, foi recebido quando das Cruzadas, por um príncipe árabe que o iniciou no Sufismo. Então prègou às aves, alguns anos depois do místico Sufi, Rumî, ter prègado aos cães. Sendo uma Filosofia do Amor, o Sufismo tem, neste aspeto, muito em comum com o Cristianismo. Assim, para conservar a "guarda do coração", o homem deve mostrar uma "vigilância" permanente (muraqabah), o que corresponde, como se sabe, à prática de "orar e vigiar", aconselhada no Novo Testamento. Só desse modo o místico pode conhecer o divino e alcançar o estado de Homem Perfeito (Ahsantaqwîn), que é aquele que está em comunhão com Deus. Os seus atributos deverão ser a humildade, a paciência, a fidelidade e, acima de tudo, a veracidade (sidq), que consiste em ver as coisas "como realmente são", esquecendo-se de si próprio. Dizia al-Hallaj, o maior místico do século X: "Tornei-me Aquele que eu amo e Aquele que eu amo tornou-se eu. Somos dois espíritos unidos num único corpo". Jesus, expressando esta mesma identificação, limitou-se a dizer: "Eu e o Pai somos Um. Eu estou no Pai e o Pai está em mim". O Homem Perfeito tem, portanto, de atingir a unidade com Deus. Mas, para que isso seja possível, tem de se libertar de todos os véus da ilusão. Estes "véus" dividem-se em duas categorias: os "véus escuros" (tentação.cólera, desejos...) e os "véus claros" (castidade, excesso de humildade...). Estes "véus claros" constituem uma perigosa armadilha, onde facilmente são apanhados os adeptos mal preparados; pois, parecendo conduzir à extinção do "eu", alimentam ainda mais a "personalidade". A Unidade é expressa atrvés de cinco graus: 1º - "Não há outro Deus senão Alá"; 2º -"Não há outro ele senão Ele"; 3º - "Não há outro tu senão Tu"; 4º -" Não há outro eu senão Eu"; 5º - "Não se pode formular, porque não há união nem separação, nem mesmo afastamento ou aproximação. (continua) (1) A palavra "Islamismo" deriva de "Islam", que é um substantivo com a mesma raiz do verbo "aslam", que significa "submeter-se". O particío ativo deste verbo, "muslin" designa "aquele que se submete". Daí derivou o termo muçulmano, que significa "aquele que se submete a Deus" Estamos condicionados. E dificilmente somos capazes de nos libertar deste condicionamento e pensar por nós próprios. Pois, tanto é peso do meio envolvente, que exerce sobre nós uma influência asfixiante! Por isso, aquilo que vulgarmente se chama "cultura" não passa muitas vezes de um somatório de conhecimentos dispersos, desordenados e sem dimensão espiritual. Uma espécie de "culto das exterioridades"... (sobre isso, teremos ainda muito que falar...)
Gurdjieff advertia frequentemente os seus discípulos dessa realidade. E referia-se ao facto das bibliotecas conterem muitos milhares de livros, escritos por "adormecidos" para outros "adormecidos". Assim, o sono pega-se com facilidade e é quase impossível acordar. É que este "saber", de que tanto nos orgulhamos, apresenta-se muitas vezes divorciado da vida, sobrevalorizando determinadas realidades em detrimento de outras. Vem então a propósito esta história: "Um dia, quando Nasruddin ajudava um mestre-escola a atravessar um rio de barco, disse, a determinada altura, uma palavra errada, que mereceu imadiatamente a reprovação do professor: - Nunca aprendeste gramática? - perguntou o mestre-escola ao barqueiro. - Não - respondeu Nasruddin. - Então, perdeste metade da tua vida. Mas, alguns minutos depois, foi a vez de Nasruddin perguntar: - O senhor nunca aprendeu a nadar? - Não - disse o professor. - Então, vai perder a vida toda, porque vamos afundar-nos. Estamos realmente condicionados. E, por isso, a nossa vida assume muitas vezes um aspeto puramente convencional e até mesmo "mecânico". As nossas palavras, os nossos gestos, os nossos atos são mecânicos, repetitivos, perdendo a espontaneidade e a criatividade. Por esse motivo, temos de estar "vigilantes" se nos queremos libertar, pelo menos parcialmente, desse condicionamento. Os nossos atos provêm de solicitações do mundo exterior que exercem sobre nós um domínio tirânico. Tanto as nossas ideias como as nossas ações são, por assim dizer, "fabricadas", de acordo com os interesses e os objetivos da organização social onde estamos inseridos. Tudo isto nos leva a pensar que não são unicamente os ratos de laboratório que podem estar "condicionados" (segundo a experiência de Pavlov e a sua teoria dos "reflexos condicionados". Também o homem pode estar "condicionado". Por isso, o psicólogo inglês, Hans Eysenck, parodiando a experiência de Pavlov, contava uma engraçada anedota sobre o rato de laboratório que dizia para o outro rato: "Sabes... tenho um homem muito bem "condicionado". Sempre que carrego nesta alavanca, ele deixa cair um pedaço de comida para mim." Quantas vezes nos recordamos de nós próprios? Há momentos ocasionais em que isso acontece. Surgem até em circunstâncias inesperadas. Podem ocorrer, por exemplo, durante uma viagem: Subitamente, olhamos à nossa volta e dizemos: "Que estranho? Eu aqui neste lugar!" Outras vezes, podem ocorrer em situações de perigo, em que ouvimos a nossa própria voz e nos vemos e observamos como se fosse de fora.
Recordarmo-nos de nós próprios é tomar consciência da realidade mais profunda que existe em nós. Mas não é isso que geralmente se passa. Habitualmente estamos identificados com pequenas coisas, a que costumamos atribuir muita importância: o nosso nome, o nosso retrato, o nosso estatuto social... Mas, quem somos na realidade? Esta é a resposta que se exige e sem a qual não é possível despertar em nós uma consciência mais elevada da vida. "Conta-se que um professor ocidental, pretendendo conhecer o Budismo Zen, quis visitar um dos seus templos. Recebeu-o então o superior do mosteiro que, amavelmente, foi respondendo às questões. Mas, quando o professor pretendeu entrar no interior do templo, o Mestre perguntou-lhe, de modo súbito e inesperado: "Quem és tu?" Surpreendido, o professor hesitou durante alguns instantes, mas acabou por responder: "Quem sou eu? Olhe, sou alguém que anda a viajar neste mundo..." Então, o Mestre sorriu e disse: "Ah... andas a viajar? Então, desejo-te muito boa viagem!" Há uma questão fundamental, segundo o Zen: O Mestre tem sempre a intenção de despertar a consciência do discípulo. Quando faz uma pergunta não atribui qualquer importância ao aspeto formal da resposta. A resposta pode ser, para nós, o maior de todos os disparates e, no entanto, ser aceite pelo Mestre. O aspeto formal não tem, para o Zen, qualquer significado. O que é de facto importante para o Mestre Zen é o nível de onde parte a resposta. Ora, no caso apresentado, a resposta do professor ocidental não teria agradado ao Mestre. Por detrás daquela resposta, esconder-se-ia certamente uma consciência "adormecida". E oque o Mestre exigia era o despertar imediato (a iluminação - o "Satori", segundo a terminologia do Zen). Gurdjieff interrogava-se: "Como despertar? Como escapar a este sono?" E depois dizia que o homem não podia despertar por si próprio. Mas se vinte homens combinassem entre si que o primeiro deles a despertar despertaria os outros, já poderia haver alguma hipotese de acordarem. Porém, também poderia acontecer que esses vinte homens adormecessem todos e que sonhassem que estavam despertos. Também podia acontecer isso. Pois, é frequente as pessoas sonharem que estão acordadas e, o que é ainda mais grave, que são capazes, nessas condições, de acordar os outros. Mas, o resultado é que todos ficam a dormir mais profundamente ainda. Gurdjieff aconselhava então a procurar um homem que não estivesse adormecido ou que, pelo menos, não adormecesse tão facilmente como os outros. "Se encontrarmos um desses homens, (dizia), devemos imediatamente contratá-lo, porque, sem o seu auxílio, é impossível despertar"... Mas, para acordar, (dizia Gurdjieff), é necessário um choque. Mas, quando alguém está profundamente adormecido, um choque não é suficiente. São precisos muitos choques. Um longo período de choques é necessário. E é preciso também alguém capaz de administrar esses choques. Mas a dificuldade é encontrar alguém com esses requisitos. Porque, provavelmente, um pessoa, com essas condições, recusará perder o seu tempo a despertar os outros, pois deve ter, com certeza, trabalhos mais interessantes a fazer. Para despertarmos, é necessário trabalhar coletivamente. "Precisamos, para isso, de encontrar outras pessoas que queiram também despertar, Tem de haver organização e deve existir um chefe. Sem essas condições, o trabalho não pode apresentar os resultados desejados e todos os esforços serão vãos." Esta ideia de sono e de sonho em que permanecemos mergulhados encontra-se em quase todas as formas de pensamento filosófico e religioso. Jesus advertia os discípulos para a necessidade de manter o estado de "vigília": "Orai e vigiai", dizia frequentemente. Buda mostrou também que o estado de "desperto" é a condição fundamental para se alcançar a Iluminação. E, no "Liber Mutus" do século XVII, há uma ilustração que apresenta um homem, dormindo numa praia, com os anjos à sua volta, tocando trombetas para o acordar. Quer isto dizer que o sono acompanha sempre a vida do homem comum e as influências dos planos mais elevados do Universo não chegam até si. Estivemos a falar sobre o sono e o sonho em que nos encontramos habitualmente mergulhados. Vamos retomar ainda este tema:
O sábio russo, Gurdjeff, preocupou-se muito com o despertar da consciência e com a recordação de nós próprios. Dizia que o homem, no estado de vigília, está quase sempre na mesma situação em que se encontra no sono inconsciente. Porém, o estado de vigília é mais perigoso. E é mais perigoso, porquê? Porque enquanto dorme, o homem está passivo. Nada consegue fazer. Pode ter sonhos terríveis: Pode sonhar que está a roubar ou a matar alguém. Mas, como está numa situação pssiva, nada disso se concretiza. Contudo, no estado de vigília, pode agir. E o resultado das suas ações repercurtir-se-á nele e em tudo o que o rodeia. Age no entanto como se fosse uma máquina, não conseguindo controlar a vaga dos seus pensamentos e das suas emoções. Não está portanto consciente. Vive no mundo subjetivo do "eu gosto", "eu não gosto"... "isto agrada-me", "aquilo não me agrada"... "desejo", "não desejo"... O mundo real está-lhe vedado, ainda que possa imaginar que vive de facto no mundo real. Este género de sono é na verdade muito perigoso. Basta observar as atitudes alucinadas de grande parte das pessoas, capazes de cometer os crimes mais horríveis, para se perceber imediatamente como é de facto muito perigoso este género de "sono"... Uma das suas consequências é, por exemplo, a guerra. A guerra significa que milhares, ou milhões, de "adormecidos" se esforçam por destruir outros milhares, ou milhões, de "adormecidos"! Recusar-se-iam a isso, com certeza,se despertassem. Despertar signica recordarmo-nos de nós próprios. Mas, seremos realmente capazes de nos recordar sempre de nós próprios? A maior parte das vezes estamos esquecidos de nós próprios. Meditemos neste "eu" que pensa, que fala, que experimenta as mais diversas emoções. Quem é este "eu"? De facto, a vida real, tal como a vivemos, é um esquecimento quase permanente da nossa realidade essencial. Às vezes, temos um vislumbre fugaz dessa realidade, algo que emerge momentaneamento do oceano do nosso ser... Ouspensky, o mais fmoso discípulo de Gurdjieff, ao abordar este assunto, costumava perguntar: "Será possíel controlar esses momentos de consciência em que nos recordamos de nós próprios? Será possível evocá-los e torná-los mais frequentes, mantendo-os durante mais tempo, ou mesmotorná-los permanentes? Segundo Ouspensky, apenas nos recordamos dos momentos em que estivemos conscientes. Assim, em relação ao passado, por que razão nos recordamos de certos factos e não nos recordamos de outros? Porque só nos lembramos dos factos em que estivemos conscientes. Estivemos recentemente a falar sobre a aceleração vertiginosa da vida moderna. Você já reparou com certeza que esta correria desenfreada em nada tem contribuído para o despertar da nossa consciência. Estamos de facto adormecidos, embriagados... Talvez mesmo mergulhados num sono e num sonho profundos... Precisamos de despertar. Mas, como? Você já pensou que a diferença entre o que habitualmente se considera "sono" e o que se considera "vigília" é praticamente inexistente? São inúmeros os fatores que contribuem para este estado de sono e de sonho. Mas, infelizmente, quase não nos apercebemos disso. Contudo, muitos de nós tiverem já a experiência que que vivemos algumas vezes num estado de sonho. Recordo-me, por exemplo que, em criança, ficava fascinado com as aventuras do Tarzan. Era um herói contagiante. E, por isso, imaginava situações em que eu era o próprio Tarzan e, por conseguinte, o protagonista das suas aventuras. Tudo não passava de um sonho evidentemente. E, apesar de não me encontrar propriamente a dormir, não deixava de ser um sonho. Ora, se é normal as crianças sonharem durante as suas brincadeiras, por vezes, esses sonhos prolongam-se por toda a vida. É mesmo verdade: Esses sonhos prolongam-se muitas vezes pela vida fora... Por isso, há pessoas que imaginam (ou sonham) que são presidentes, ministros, personagens muito importantes... Vivem a engendrar situações em que se imaginam na pele dessas personagens, compensando desse modo as suas limitações, as suas insuficiências, as suas frustrações... Mas, o perigo é quando esses sonhos, ao permanecerem durante muito tempo na sua imaginação, assumem um aspeto de realidade. Então, as pessoas, não conseguindo distinguir o sonho da realidade, começam a sofrer de graves perturbações, chegando mesmo a enlouquecer... É assim que surgem os "Napoleões", os "Alexandres Magnos"... Ouvi até dizer que num determinado hospital psiquiátrico, encontravam-se dois doentes que tinham, ambos, a mania que eram o "Napoleão". Quando foram dizer isso ao diretor do hospital, este ficou preocupado e pensativo. Então, declarou: "O problema é saber-se qual dos dois é que o verdadeiro Napoleão. Sim... porque o Napoleão só pode ser um!". E também, no mesmo hospital, havia um doente que estava convencido que era "Alexandre Magno", ficando no entanto curado após um demorado tratamento. Contudo, começou a lamentar-se: "Ah... quando eu era Alexandre Magno era tão feliz...Toda a gente me respeitava... Era uma pessoa muito importante... Mas, agora, que estou curado e vejo afinal que não sou ninguém, sinto-me tão triste, tão insignificante..." Então, dirigindo-se aos médicos que o trataram, implorou: "Por favor...restituam-me a minha loucura! Quero voltar a ser Alexandre Magno". Ultimamente, tenho falado muito sobre o tempo. Mas o que é o tempo? É uma coisa real? Ou fomos nós que o inventámos? O tempo tem valor absoluto?
Começo por me referir a um facto, narrado num importante livro sobre esoterismo: "Um campião de tenis disse que, durante uma partida, ao receber uma bola particularmente difícil, viu subitamente a bola aproximar-se dele, "ao retardador". Vinha tão lentamente, que ele teve o tempo todo para avaliar a situação e tomar a decisão adequada, efetuando um golpe de mestre que causou a admiração de todos que assistiam." Como explicar este estranho acontecimento? O autor da obra afirma que os casos em que o tempo se dilata devem-se a uma acelaração considerável dos nossos centros psíquicos. (foi provavelmento o que aconteceu com o tenista). Assim, quanto mais rápida for a nossa perceção, mais lentos parecem os fenómenos do mundo exterior. Inversamente, quanto menor é a rapidez de perceção, mais rapidamente o tempo passa. Ora isso explica a razão por que o tempo passa muito mais lentamente durante a nossa infância. Temos, quando crianças, uma maior rapidez de perceção e, consequentemente, as coisas à nossa volta processam-se mais demoramente. Por outro lado, à medida que vamos avançando na idade, diminui a nossa rapidez de perceção, e o tempo escoa-se mais depressa. Afinal o que é o tempo? O tempo não tem valor absoluto, mas apenas relativo. Neste sentido, o tempo é a perceção que dele temos. Por isso, no "sono sem sonhos", não há tempo, porque não temos dele perceção alguma. Qual deve ser portanto a unidade do tempo? O segundo? O minuto? a hora? Ou a perceção que dele temos? Deixo isso à vossa consideração. E termino com esta quadra, ao jeito popular: "Perguntam-me o que é o tempo? Não consigo explicar. Mas sei por certo o que é se niguém me perguntar." |
JOSÉ FLÓRIDOREFLEXÕES Histórico
Março 2017
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